domingo, setembro 30, 2007

Just friends

Friends, é só isso mesmo, todos os amigos que a blogesfera me trouxe.
Alguns mais conhecidos nos ciclos blogesféricos de que outros, todos para mim merecem a mesma atenção, deferência e admiração.
Em posts, irei apresentá-los, procurando com isso, em alguns casos, emergi-los de um anonimato imerecido. A ordem será arbitrária, tendo como critério da escolha, os que são menos visitados, desconhecendo o propósito do destino, a sua qualidade não tem a divulgação merecida.
Vou começar pelo Henrique Sousa. Escritor e professor, é o usurário do blog Hora absurda IV onde a crítica pertinente e mordaz nos é servida muitas vezes no prato da ironia. Para ilustrar um pouco o que escreve, apresento-vos um excerto do seu “Tratado”, compilação de textos publicados, intitulado Das Tinturra

De certo pensarão que vos falar do dia de hoje, e pensam muito bem. Ora, morando nos arrabaldes de Leiria, foi enorme o meu regozijo ao ver uma loja que caiu em desuso andava a ser convertida em nova superfície comercial. A fachada foi vedada ao público até ao dia da abertura, e… qual não foi a minha (agradável) surpresa quando vi nascer uma…FARMÁCIA!
Fantástico, pensei cá para os meus botões. Já não vou ter que caminhar uns bons quilómetros para comprar tintura de iodo de que tanto preciso para os pés. Dois ou três dias depois da inauguração, entrei na bem-dita farmácia, teci um rasgado elogio à iniciativa, e pedi se me podiam aviar um frasco de álcool iodado a 10%. Resposta imediata dos empregados trajados a rigor com bata branca.
- Ah! Caro senhor, lamentamos muito, nós aqui não fazemos manipulações, terá que se dirigir a uma das farmácias de Leiria que fazem (ainda) dessas coisas. Sabe, hoje há o Betadine, o Senodyme, o vaiscontentemos-semdine, etc…
- Está bem, percebo! Mas será que me podia então vender a tintura de iodo e o álcool que eu em casa manipulo?
- Bem, o álcool pode compre-lo no Lidl, aqui a cem metros. Quanto à tintura de iodo…só por curiosidade, qual a marca que prefere? Vou ver se há!
- Qualquer, desde que seja tintura de iodo!
Passados dez minutos, aparece o solícito empregado (de bata já menos limpa), desculpando-se:
- Sabe, não consigo encontrar tintura de iodo na base de dados. Sabe o nome comercial?
- Experimente Tintex ou Tinturex ou IODOMAX ou Prolalex, FUNGOMAT, PEDATLETIX…
- Ah, muito obrigado pelas sugestões.
Entretanto vim cá fora fumar um “cigarrex”, enquanto o pressuroso empregado pesquisava a sua base de dados. De regresso ao interior, enquanto passava uma vista de olhos pela montra dos chanpôs e dos perfumes, o afadigado e empenhado empregado chama-me:
-Caro senhor! Lamento (já a bata andava feita num oito), mas essa tintura não consta de nenhuma base de dados das farmácias.
- Paciência! Lá terei de ir ao centro de Leiria. Mas tem aí algum medicamento para o pé-de-atleta?
A face do empregado iluminou-se com um sorriso que ia de orelha a orelha. Abotoou-se e, num ápice, encheu-me o balcão com mais de vinte produtos – eram cremes, pós, sprays, inaladores, adesivos, cápsulas, injecções, clisteres, etc. – destinados a combater o pé-de-atleta. Começou então a falar das virtudes de cada um dos medicamentos, efeitos laterais e colaterais, manter afastado das crianças, não tomar durante a gravidez, evitar conduzir sob o efeito da pomada, não beber durante o tratamento, conservar em lugar fresco e seco (será para por no frigorífico?), etc..Resultado: lá trouxe uma pomadita que ando a pôr há uma semana mas o pé-de-atleta continua assanhado.
Hoje fui ao centro de Leiria e passei por várias farmácias e perguntei por tintura de iodo. Nada! Não há, já não se usa, é perigoso, leve antes isto ou aquilo. Não, muito obrigada, eu quero tintura de iodo, o pé-de-atleta só passa com tintura de iodo.
Se calhar, vou hoje a uma loja dos chineses perguntar se têm tintura de iodo para curar o pé-de-atleta.

Um abraço Henrique.

terça-feira, setembro 25, 2007

O Egoísmo


Fundamentalmente, o egoísmo, é o sentimento do interesse pessoal, que alheio aos interesses dos outros, só a sua satisfação conta. Proveniente do instinto, pode ser astuto e sagaz, mas nunca inteligente.

Como a Evolução ainda não foi suficiente para superar o instinto, o egoísmo tende acrescer com a civilização, que o excita de tal forma, que quanto maior for, mais hediondo é o seu efeito.

De todas as imperfeições humanas, o egoísmo é a mais difícil de desenraizar, porque deriva da matéria, influência de que o homem, ainda muito próximo da sua origem, não pode libertar-se e para cuja manutenção tudo concorre à sua volta. Fenelon.

O egoísmo é a fonte de todos os vícios, como a caridade é de todas as virtudes.
Destruir um e desenvolver a outra, deveria ser o alvo de todos os esforços do homem, mas tarefa impossível, quando só o egoísmo o norteia e ignora por completo o significado da outra.

O egoísmo corrói a sociedade, é como uma doença contagiosa, de que poucos se livram do contágio. Perante o egoísmo dos outros, por vezes, a sua única defesa é ser egoísta também, acabando por ser o egoísmo a nortear, maioritariamente, as relações entre os homens.

O homem desejar ser feliz, é uma legítima pretensão, só que o seu conceito de felicidade, reside na satisfação dos seus desejos, em que uma voraz pretensão, o torna insaciável. Ainda um não está satisfeito, já outro se perfila no horizonte.

Se a obsessão pela satisfação dos desejos, motiva o aparecimento da cupidez, da inveja, do ciúme e do ódio, o predomínio do instinto, guia o seu comportamento e, a sua razão e discernimento, forjam-lhe um carácter baseado nas mais fortes sensações.

Lentamente, o ego, passou a ser o elemento básico para a sobrevivência da sua consciência de ser, exteriorizando-se na personalidade onde o orgulho e a arrogância são as sus características.

Enquanto nos demoramos nas teias da animalidade, costumamos centralizar a vida na concha do egoísmo. Kant

Sendo o egoísmo, o fundamento do comportamento humano, é difícil conseguir desalojá-lo, contudo, à medida que o homem se abre à espiritualidade, menos valor têm as coisas materiais e, a verdadeira felicidade vem ao encontro dele.

domingo, setembro 23, 2007

Power of Schmooze Award

O Peter teve a gentileza de atribuir o prémio Power of Schmooze Award, que agradeço.
"Este prémio é uma tentativa de reunir os blogues que são adeptos dos relacionamentos "inter blogues" fazendo um espaço para ser parte de uma conversação e não apenas de um monólogo."
Não costumo dar grande importância às correntes premeadoras que correm nos blogs, não por menosprezo de quem me atribui os prémios, mas dos prémios em si, cuja proliferação acaba por lhes tirar qualquer sentido meritório, acabando por caírem numa vulgaridade que os contradizem.
A aceitação deste, deve-se ao que o fundamenta corresponder ao que eu penso do que deve ser o relacionamento entre os blogs. Um agrupamento em que o diálogo é o seu fundamento, e não uma mera cortesia de visitas onde a essência do que se escreve se perde na habituação.
Pessoalmente não tenho muita razão de queixa, mas custa-me ver alguns blogs, onde textos de superior qualidade, são apreciados com um simples, “Olá sou eu”.

A minha escolha não é fácil, que me perdoem os que não mencionar.

Henrique do Hora absurda IV
Paulo Sempre - Os filhos de um Deus menor
Diogo de Um homem das cidades
Vladimir - Vladimir da lapa
Black Angel do Pleasuredome II e Pleasuredome 1

domingo, setembro 16, 2007

O banho

O local escolhido para o picnic, nessa manhã de quinta-feira, foi a praia do Guincho. O grupo que ia confraternizar, constituído por três famílias amigas, pais e respectivos filhos, escolheram um lugar abrigado pelas dunas, onde aquele vento obstinado em encher a comida de areia, fosse o mais possível frustrado no seu intento.
A praia, devido ao cedo da chegada, estava deserta, hora completamente surrealista para os profissionais do escaldão.
O mar, apesar da maré baixa, tinha forte rebentação, o que aconselhava cuidados redobrados, não sendo aconselhável, qualquer tipo de banho com a água acima dos joelhos.
Valente era o nome do filho de um dos casais. Rapaz de dezassete anos, estatura média, de constituição física rasando a obesidade, em tudo que fazia, procurava evidenciar o porte físico, como de musculatura se tratasse, as banhas que lhe tremelicavam no corpo.
As corridas, o jogo da bola e a companhia do Sol, cada vez mais quente, acabaram por concorrer para um desejo irreprimível de refrescar o corpo.
Todo o grupo se dirigiu à borda de água. Uns molhando os pés na vigia das crianças mais novas, outros com as cautelas necessárias, com a água pelo meio das canelas, onde o fluxo das águas, projectadas pela rebentação das ondas, fazia sentir a sua força, bem como a do refluxo, que não queria passar despercebido. Cada um refrescava-se como podia, fazendo uma concha com as mãos, ia-se regando. A gritaria, provocada pelo arrepio causado pelo frio da água, completava o quadro daqueles banhistas felizes.
O Valente com sua peculiar exuberância, dava saltos a trás de saltos, com o intuito de salpicar tudo à sua volta, numa vontade sádica de ver todos molhados. Repreendido pelos pais, mais do que uma vez, após ligeiro intervalo, logo recomeçava a irritante brincadeira, para mal grado de alguns, que só não patenteavam ostensivamente o seu desagrado, por deferência aos pais.
A sua euforia era tal, que não reparou numa onda, que rebentando do lado de cá da rebentação, provocou um fluxo de água maior do que era habitual, cujo ímpeto, derrubou o Valente, obrigando-o a rebolar na areia alguns metros, o que teria sido, para os que tinha estado a molhar, um castigo merecido, caso o refluxo, também mais forte, não o tivesse puxado para dentro do mar e, desaparecido no turbilhão provocado pelo encontro do fluxo e refluxo das águas.
O primeiro grito foi o mãe, seguido pelo impulso irreflectido do Miguel, outro dos jovens do grupo, com mais um ano do que o Valente, em se atirar ao mar, na tentativa de socorre o amigo, mas que o pai ao aperceber-se das suas intenções agarrou-o.
O mar aos olhos de todos, sem saber, cresceu e as ondas tornaram-se aterradoras. Na praia o desespero tomou conta de todos. À aflição da mãe juntaram-se as outras, enquanto os homens sem saberem o que fazer ao certo, procuravam o socorro que não existia.
O pai do Valente que era militar, procurava manter a calma, mas acabou vencido, sentando-se no chão a chorar. Por mais que olhassem, do Valente nem sombra, só a espuma que cavalgava a cristas das ondas era visível e, o barulho da rebentação, desiludia qualquer esperança.
De repente alguém do grupo gritou:
- Está ali! Está ali! Olhem!
Do lado de fora da rebentação, o Valente, de braço no ar, acenava e a cabeça fora de água gritava. O vento soprou a esperança; estava vivo! O alívio trouxe o discernimento, e este mostrou que era impossível ultrapassar a rebentação para o ir buscar.

Então, um dos pais teve a ideia de ir a Cascais pedir ajuda a um barco, que por mar, o fosse resgatar e, partiu correndo para o automóvel, enquanto o os pais do Valente gritando, lhe tentavam dar ânimo infrutiferamente, pois o som da rebentação, que entrepunha entre eles, não permitia que as recomendações chegassem a ele.
Todo o grupo não tirava os olhos dele, na esperança de o não perder de vista, ele, possivelmente, consciente de que estava a ser visto, deixou de acenar, mantendo-se quieto átona de água, tirando partido da sua gordura, flutuava.
O pai com os braços tentava dar-lhe indicações para se afastar da zona de rebentação, nadando para fora. A esperança, a pouco e pouco tornou-se na certeza de que o salvamento era uma questão de tempo e, a preocupação de fixar o olhar nele, não os deixou aperceber de que não estavam parados mas a andar na praia para o poderem seguir.
A maré de vazia, estava tornar-se cheia e, uma corrente traiçoeira arrastava-o ao longo da costa, na direcção das rochas onde a praia findava. Conscientes de que a velocidade da corrente o ia atirar contra as rochas, antes da chegada de qualquer socorro por mar, o desespero voltou a tomar conta deles, e mãe desesperada, voltava a gritava por ele.
O grupo, impotente, assistia à tragédia que se avizinhava, quando sem darem por isso, alguém passou por eles correndo, só sendo notado, quando o viram mergulhar e nadar em direcção à rebentação. Entreolharam-se mas estavam todos presentes, o estranho não era nenhum deles.
Também ele desapareceu na rebentação, mas pouco depois voltou a aparecer, já do lado de fora, nadando ao encontro do Valente.
- Não se agarre a mim! – Gritou quando chegou ao pé dele. – Está bem?
- Estar bem, estou, só não sei é como conseguir vencer a rebentação para voltar, a corrente está muito forte.
- Pois está e, as rochas já estão perto. Tentos de tentar furá-la, ou vamos bater com os ossos nas pedras.
- Só não vejo como, com este mar.
- Vamos nadar até à rebentação, esperamos por uma onda grande e tentamos surfar nela. Se a apanharmos na altura certa ela empurra-nos para terra.
Nadaram para a rebentação e aguardaram a onda maior. Quando chegou a sétima, o desconhecido deu-lhe a mão e, com a outra tentaram nadar para acompanhar o correr da onda, o que conseguiram por uns segundos, para depois serem envolvidos no seu rebentar e, no turbilhão da espuma desaparecerem os dois.
A aflição não na praia reapareceu, mas por pouco tempo, pois fluxo da onda em direcção à praia, trazia os dois, rolando violentamente na areia do fundo, acabando por darem à costa.
O Valente que se encontrava de bruços na areia, não se mexia, atordoado pelo rodopio da água. Foi prontamente socorrido por todos. Levantaram-no, mas logo dobrou os joelhos e, começou a vomitar a água que bebera no rafting forçado. Combalido e meio tonto, fazia um esforço por se manter direito, o que foi conseguido, com duas estaladas que o pai lhe deu. Homem de mão pesada, o efeito foi não se fez esperar e o Valente já se queixava mais do tratamento do pai do que do mar.
A euforia do reencontro era grande, enquanto a mãe, olhando à sua volta, procurava o desconhecido para lhe agradecer. Mais ninguém além deles estava presente. Procuraram no areal, foram até às dunas, mas nada, a praia encontrava-se vazia como quando eles tinham chegado.

domingo, setembro 09, 2007

Aula de paleontologia

A sala, redonda, tinha o aspecto de um anfiteatro, onde as bancadas, lotadas, em forma de degraus, desciam até um pequeno parapeito que circundava a parte central.
No centro, sob forte iluminação, encontrava-se uma mesa rectangular, sobre a qual se podia ver o fóssil recentemente encontrado.
A excitação manifestada pela assistência, devia-se ao facto de, pela primeira vez na história dos estudos paleontólogos, o esqueleto fossilizado do animal que ia ser observado, não só estava em excelentes condições de conservação, como, o mais importante, estava completo, não lhe faltando nenhum osso.
O convívio que se estabelecera bancadas, foi interrompido com a entrada do professor que, sem perder tempo com preliminares introdutórios, começou a aula, apontando para uma das extremidades do fóssil.
- Esta formação óssea, apresenta diversos ossos articulados, que nos permitem identificar a sua forma arcaica de locomoção.
Depois, subindo um pouco, continuou a observação do fóssil:
- Estes ossos compridos, pela robustez que apresentam, conclui-se que o tronco que sustentavam teria um grande peso, devido às exageradas dimensões dos órgãos que alojava, destacando-se o aparelho digestivo. Esta forma primitiva de absorção de energias, também era utilizada como meio de auto satisfação. Agora reparem, - continuou ele - nestes ossos paralelos ao tronco. O seu tamanho desproporcionado em relação à parte superior do corpo, faz-nos crer, que muito do que chamamos actividade mental, era feita por eles, uma forma grotesca de manusear os pensamentos.
Por fim chegou à outra extremidade.
- O fóssil é encimado por uma cabeça, chamemos-lhe assim. Observem que, o que sobra na dimensão dos braços, falta na cabeça. Com metade da dimensão da nossa, alberga inevitavelmente um cérebro pelo menos com metade do nosso. As suas funções muito primárias e condicionadas pelos instintos, ainda não conseguiram libertar-se dos genes primitivos da criação. A fixação pela sobrevivência é demasiado evidente. Esta manifesta falta do saber do conhecimento, condicionam-lhe o sensitivo, que só expressa uma forma de vida, onde o ego impera.
Após uma curta pausa, olha em redor a assistência e continuando sem emitir um único som, pergunta:
- Alguém quer fazer alguma pergunta?
A resposta, sem sonorização, não se fez esperar:
- Como podemos classificar esta espécie?
- É uma variante tardia da espécie Homo, com cerca de 1,5 milhões de anos, aquém pelo seu grau de evolução em relação às variantes anteriores Habilis e Erectus, lhe chamaram erradamente de Sapiens, quando o seu verdadeiro nome deverá ser Predador. Homo Predador.

sábado, setembro 01, 2007

Bandeiras de oração

Naquele dia, Frederico chegou atrasado ao refeitório e, na mesa onde usualmente almoçava com outros colegas de curso, seus amigos, o lugar que ocupava por direito da habituação, estava ocupado por outro estudante. Desapontado com a perca da companhia, não teve outra solução se não procurar outro local para comer.
A contrariedade de não poder conversar com os colegas, deixou-o irritado, acusando de incompetente a funcionária da secretaria, por não ter sido mais diligente no atendimento. Se havia coisas de que gostava, conversar no refeitório durante o almoço era uma delas, havia sempre um assunto qualquer em discussão e, argumentar, mesmo utilizando falsas premissas, era para ele quase um desporto, onde exercitava toda a sua capacidade de argumentação. Quando todos diziam que ferro era ferro e ele contrapunha que era madeira.
Não tinha outra alternativa, ou comia de pé, ou teria de partilhar outra mesa com desconhecidos. De bandeja na mão, deambulou por entra as mesas, mas a hora por ser de ponta, não estava fácil encontrar um lugar, outros retardatários também se candidatavam às vagas que iam ocorrendo. Após alguns insucessos, por ser menos rápido, ou estar em posição mais desvantajosa, em relação ao acontecer de alguma vaga, um lugar vagou mesmo ao pé de si.
Sentou-se sem que os restantes ocupantes dessem por ele, a discussão que estava instalada não permitia desatenções, pois as argumentações, pelo empolgamento, saltavam na mesa, como se de uma bola de ping pong se tratasse.
A curiosidade fê-lo apurar o ouvido e, como o tema em debate lhe era particularmente afecto, mentalmente entrou também na conversa, ajuizando as argumentações, concordando ou discordando com elas. Na sua opinião muita asneira estava a ser dita, percebia-se que falavam de um assunto onde não eram muito entendidos e que as afirmações eram mais provenientes do empírico do momento do que fundamentadas no conhecimento. Só um deles parecia ter alguns conhecimentos, mas como não era o mais habilidoso na dialéctica, a sua argumentação, mesmo quando certa, perdia-se nas imprecisões dos outros.
A vontade de interferir na conversa era muita, mas o receio de não ser bem aceite, inibia-o de fazer qualquer comentário, quanto mais tomar algum partido.
Já tinha acabado de comer o tradicional empadão de carne, depois de ter experimentar a sopa, que rejeitara e, protelava o descascar do pêro para prolongar a estadia na mesa, movido pela vontade de ouvir até que ponto, as “barbaridades” que eram ditas, podiam chegar, quando as posições dos três conversadores, se radicaram num impasse, cada um com a sua. Três hipóteses para a localidade do nascimento de Buda. Um defendia a Índia, o que deveria argumentar baseado em postais ilustrados, outro, partidário do Tibete, pareceu-lhe que via muitos programas televisivos e o terceiro, o que demonstrava ter mais conhecimentos consistentes, sem grande convicção, defendia o Nepal. Como o consenso não surgia e para que a dúvida não subsistisse, inconscientemente, em voz alta, manifestou a sua opinião:
- Nepal!
Não dando tempo a contraditório, ou qualquer protesto à sua intervenção, justificou a sua opinião, não perdendo a oportunidade de contestar muitas das afirmações que ouvira.
Estupefactos pela intervenção do estranho, dois deles limitaram-se a ouvir o que ele dizia, até que, achando que a lição já chegava, levantaram-se e fora-se embora. O terceiro de nome Salvador, também nada dizia, não pelo desagrado da intervenção, mas pelo fascínio do que ela dizia. Timidamente começou a arriscar algumas questões, que prontamente eram elucidadas pelo Frederico e, o monólogo inicial, acabou numa interessante conversa, que esqueceu o tempo, só lembrado quando uma empregada os convidou a sair porque queria fechar o refeitório.
A saída do refeitório, foi a entrada para uma amizade, que a empatia se encarregou de fortalecer. De gostos e interesses semelhantes, a espiritualidade e o prazer das viagens, era o que os mais uniam. Todos os anos, durante as férias, passaram a fazer grandes viagens juntos
Muito interessados no budismo, passavam longas horas falando sobre a doutrina de Sidarta e de como deveria ser o comportamento humano, face a tão importantes ensinamentos. A veneração pelo grande mestre era tão grande, que a ideia de visitar a sua terra natal, tornou-se num desejo incontornável, mas o Frederico todos os anos, quando chegava a altura de escolher o itinerário, arranjava sempre argumentação para a opção ser outra, ficando o desejo de Salvador adiado, que insistia:
- Temos de ser um pouco como os muçulmanos pá, que pelo menos uma vez na vida vão a Meca. É a sua convicção religiosa que os leva lá. Também deve ser nosso dever, pelo menos uma vez irmos ao Nepal, visitar o lugar onde nasceu Sidarta. Gostava muito de contactar com as pessoas, saber como vivem com a doutrina dele, tentar perceber tudo aquilo que a nós ocidentais nos escapa. Não acredito que as imagens de miséria que nos chegam reflictam toda a vida deles, tem de haver algo mais, que só lá pode ser descoberto. Tem de ser para o ano, concordas?
A um ano de distância, concordar era irrelevante e, Frederico alimentava a pretensão sempre com um sim.
Após tantas esperanças goradas, um dia, o sim colocou-os no avião que fazia a ligação entre Dili e Kathmandu. Jeans, camisa tipo safari, chapéu à moda de Indiana Jones, blusão tipo aviador, um lenço ao pescoço e botas cardadas, era a indumentária escolhida como a mais apropriada para a grande aventura. A bagagem era uma mochila cheia de mudas de roupa e artigos de higiene. A máquina fotográfica era o único adereço. Frederico nunca lhe disse nada, mas achava um pouco ridículo o lenço que Salvador usava. Grande e exuberante nas cores, era a imagem da sua maneira de ser, divertido, empenhado, generoso e um grande coração.
A estadia no Nepal foi aproveitada ao segundo e o território explorado palmo a palmo. Uma ânsia de conhecer, guiava-lhes os passos e, tudo o que os olhos viam, era digerido com apetite voraz, seguido do êxtase dos sentidos. O etéreo trespassou-lhes o espírito e, uma sensação de pertencerem aquele lugar, impregnava-os de uma religiosidade, onde o sentido da existência se encontrava circunscrito ao convívio com aquele povo para quem a maior riqueza, era o sorriso e a cordialidade. Atraídos pelo íman da felicidade, chegaram a até equacionar não regressar, se tal não aconteceu foi mais pelo discernimento do Frederico, porque a vontade do Salvador estava rendida.
Travaram conhecimento com um estudante, que a troco das refeições, servia de guia e intérprete. Uma das coisas que mais acharam pitorescas eram as inúmeras bandeiras, de diversas cores, que existiam por toda a parte, que presas em extensas cordas, rodopiavam freneticamente, apanhadas pelo vento forte que as montanhas sopravam.
- São bandeiras de oração. – Explicou o guia. – São postas para homenagear alguém que morreu e pedirem a sua ajuda nesta vida. Também nelas é costume escreverem-se sutras.
- E aqueles montes de pedra que também encontramos por todo o lado? – perguntou Salvador.
- Também como as bandeiras, são orações aos mortos, uma forma de comunicarem com eles. – Elucidou o guia.
No dia do regresso, choram a despedida com a firme promessa de voltarem. Deram tudo o que tinham, o dinheiro, as mochilas e as roupas, que dividiram pelas pessoas, inclusive os blusões de que tanto gostavam e tão caros tinham sido. Só as máquinas fotográficas tiveram direito ao regresso. De mãos nas algibeiras e, Salvador com o seu inseparável lenço ao pescoço, traziam só com eles a felicidade e a convicção de que a partilha das emoções só tinha estreitado ainda mais os laços afectivos entre eles.
Alguns meses mais tarde, Frederico, inesperadamente, recebe a notícia de que o amigo tinha morrido. Mais trágico, tinha-se suicidado. O choque foi tremendo, inconformado, procurava a razão, que justificasse o que a dor não compreendia. Ainda na véspera tinham estado juntos, como foi possível ter-lhe voltado as costas, sem contar o que lhe ia na alma, teria feito tudo por ele. Como é possível os amigos procederem assim? Parte para sempre sem ao menos se ter despedido ou deixado pelo menos uma carta, ele não merecia isso, não merecia tal procedimento, não merecia ter ficado órfão dessa tão grande amizade, era o que sentia, uma grande orfandade da afectividade do amigo. Que se teria passado com ele de tão grande motivação, que não pudesse partilhar com ele? Eram amigos não eram? Não compreendia porque essa amizade tinha sido tão brutalmente interrompida. Fosse o que fosse que se tivesse passado, a sua amizade era tão forte, que teria ultrapassado tudo. Chorava o amigo, a incompreensão e a impotência da ajuda.
Quando chegaram as férias, pegou na mochila, enfiou o chapéu na cabeça e partiu sozinho para o Nepal.
Calcorreou todos os caminhos que tinha percorrido com o amigo, visitou todos os lugares onde tinham estado, voltou a viver as sensações que tinham partilhado, mas a magia do etéreo teimava em o não preencher. Em tudo havia um vazio, em tudo a saudade se manifestava e a incompreensão um tormento.
Já perto do dia do regresso, ao passar junto das ruínas de um templo budista, a sua atenção foi motivada por uma fiada de bandeiras de oração. Ao princípio não percebeu a diferença, mas quando se aproximou, verificou que no meio das bandeiras coloridas, o inconfundível lenço do Salvador, esvoaçava ao vento.
Confuso, procurou na memória e, esta lembrou-lhe o regresso, onde o lenço de Salvador tinha sido alvo da curiosidade das hospedeiras. Transpirava com a lembrança e com a mão a tremer agarrou uma ponta do lenço para se certificar que era mesmo o do Salvador. Com o lenço seguro, a certeza paralisou-o, não conseguia pensar, só tremia. Então verificou que o lenço tinha uma inscrição. Com a outra mão segurou a outra ponta para poder ler o que estava escrito.

Desculpa não me ter despedido de ti, eu sabia que voltarias. Agora que me encontraste, nunca mais me separarei de ti…

As lágrimas escorriam-lhe em tal abundância pela face que não conseguiu voltar a ler. Abriu as mãos, soltou o lenço ao vento, respirou fundo e, a dor da saudade desvaneceu-se, para dar lugar a uma alegria, que só ele compreendia.
Procurou pedras e fez um monte perto das bandeiras. Na última pedra, depois de limpa, escreveu:

Onde quer que estejas, estarei sempre contigo, a minha amizade por ti, amigo, ultrapassa o temporal. Agora que te encontrei, posso regressar em paz.