terça-feira, setembro 27, 2005

Ensaio sobre o amor

O uso e a interpretação abusiva da palavra amor, a que assistimos, tende a banalizar o seu significado, reduzindo-o a uma palavra que pela sua universalidade de aplicação, está perdendo o seu verdadeiro sentido.
Amor é um forte afecto com o objecto amado que estabelece uma vinculação afectiva, manifestando-se desde a forma mais espiritual, à mais material, passando pela sensualidade.
Ao admitirmos esta definição, estamos também a sujeitá-lo à nossa arbitrariedade subjectiva, impregnando-lhe uma forte carga egoísta, da qual pode derivar um afecto de efeito completamente pernicioso, como a ambição e a cobiça.
Contrariamente ao que muita gente pensa, a essência do amor não deriva do instinto sexual, caso contrário não teríamos o amor maternal e filial e até o amor-próprio.
Na psicanálise não naturista distingue-se entre impulso sexual e amor espiritual, sendo impossível o amor sexual propriamente dito sem uma participação de amor espiritual, ou seja, sem conteúdos ou vivências de valor. Este amor espiritual é efectivo e simultaneamente um acto de vontade, está dirigido para algo de bom. “O que é digno de ser amado”. É a componente platónica indispensável, livre do apetite sexual, para fundamentar o amor.
Em contraste, a cega paixão sensual e a volúpia sexual, vazias desse afecto, não são amor, não são mais do que puros actos de auto satisfação, à margem dos afectos. Chamar amor a isto, é a distorção do próprio amor.
Nestas circunstâncias, rotular um simples acto sexual, como “fazer amor”, é tentar dar a esse acto um significado que não tem, na esperança de uma possível entrega amorosa, que prestaria uma mais valia ao nosso ego. O amor não se faz, sente-se.
Na sua função social, aquilo que chamamos amor pelo próximo, não é mais do que a manifestação de um grau superior da simpatia, que fomenta o espírito de solidariedade e de fraternidade.

terça-feira, setembro 20, 2005

Este homem esteve em Chaimite

Manuel Dias de seu nome, nasceu em 1872 em Vila de Rei na Beira Alta. Ao contrário dos seus conterrâneos trocou como destino de migração o Brasil por Lisboa.
Assentou praça no regimento de cavalaria Lanceiros 2 e acompanhou em África, durante a rebelião dos Vátuas, Mouzinho de Albuquerque, Paiva Couceiro entre outros. Tomou parte nas batalhas de Coolelo e Macontene, tendo feito parte do pequeno grupo, chefiado por Mouzinho de Albuquerque que tomou de assalto Chaimite, o reduto sagrado dos Vátuas, aprisionando o rei africano Gungunhana. Pelo seu comportamento em combate, muito cedo foi promovido a sargento. Este homem é o meu avô paterno.

Teria eu cerca de 12 anos de idade, quando foi exibido nos cinemas de Lisboa o filme de Jorge Bruno do Canto, Chaimite. O meu avô, na esperança de matar saudades e reviver algum do seu passado, foi logo ver o filme convidando-me para ir com ele ao Paris Cinema.
Achei o filme fantástico, as cenas de guerra muito bem feitas para a época, com cargas de cavalaria e tudo, mais a heroicidade dos protagonistas, fez as minhas delicias. O entusiasmo foi tal, que queria ir ver o filme outra vez, mas o meu avô, com cara de zangado, atalhou, comigo não, ver esta chusma de mentiras até faz dó. É uma aldrabice pegada. Não foi isto que se passou.
Então não é verdade? O avô esteve lá. Por isso mesmo, sei bem como tudo se passou, ainda não estou esquecido. O Joaquim que eu conheci, não foi o herói que querem aqui demonstrar (o Joaquim era o primeiro nome de Mouzinho de Albuquerque), bebia que nem um cacho. O grande homem da guerra, continuava ele, foi o Paiva Couceiro, esse sim é que sabia comandar.
O avô também andou com ele? Se andei com ele? Combati ao lado dele numa das piores batalhas que tivemos, quando íamos a caminho de Mandlakasi vindos de Lourenço Marques.
Antes de continuar, o meu avô procurou um sítio para nos sentarmos, pois a solenidade que emprestava aos assuntos de África, não permitia que estivéssemos de pé. O local encontrado foi um banco no Jardim da Estrela, onde começou a sua narrativa.
A nossa coluna que tinha cerca de 300 soldados foi atacada por cerca de 13.000 guerreiros do Gundunhana.
Foi uma grande aflição, nunca tínhamos visto tantos pretos juntos, com pinturas de guerra, emplumados, saltando e gritando insultos na língua deles. Uma parte vinha armada de lanças e zagaias, outra com armas de fogo inglesas, fornecidas pelo pirata do Cecil Rhodes da África do Sul, que estava nos bastidores de toda a rebelião, e tinha como objectivo, apossar-se do porto de Lourenço Marques, para utilizar como porta de saída para o mar.
Toda a tropa estava aterrorizada, ninguém sabia o que fazer, alguns soldados começaram a entrar em pânico. Não fosse a pronta intervenção do Paiva Couceiro, dando ordens para uma rápida formação do quadrado, correcta colocação das metralhadoras e canhões, e pessoalmente colocar-se ao lado dos soldados para estes não vacilarem, não sei se terias hoje avô.
Os pretos lançavam ataques sucessivos, sobretudo em direcção das metralhadora, pois sabiam que estas, quando submetidas a um fogo intenso, encravavam com facilidade, e sem elas estávamos perdidos.
Foi por pouco que não furaram o quadrado o que seria o nosso fim, numa luta corpo a corpo seríamos chacinados. O Couceiro corria de lado para o outro todo o quadrado gritando, aguentem rapazes, aguentem se não estamos perdidos, fogo neles, ninguém se deita no chão. Isso é que era um oficial. Não fosse a coragem dele não sei o que teria sucedido. Por fim os pretos desistiram de continuar os assaltos e retiraram-se. Tivemos muitas baixas entre mortos e feridos, mas matamos mais de 400 guerreiros negros. Foi uma vitória tal que o Gungunhana fugiu para Chaimite.
Então foram atrás dele até Chaimite e prenderam-no, interrompia eu a narração, abanando a cabeça prosseguiu, não o perseguimos, não tínhamos muitas condições de voltar a enfrentar um outro ataque, e haviam alguns régulos na zona com muitos guerreiros.
Eu estava delirante a ouvir o meu avô, era a primeira vez que o ouvia falar de África, com tanto detalhe, normalmente quando falava da guerra era sempre só com uma ou outra fase lacónica.
Depois fui colocado no aquartelamento de Gaza, sob o comando do Mouzinho de Albuquerque, continuou ele.
Ainda me lembro como se fosse hoje, era noite de natal, estávamos todos cheios de saudade da família e com uns copitos. Os oficiais estavam também a celebrar a consoada, quando o Mouzinho de Albuquerque, com uma grande bebedeira, o que era habitual, começou a gritar, vamos a Chaimite apanhar o Gungunhana, quem quer vir comigo? Era uma loucura, o Gungunhana contava com muitos guerreiros, e para mais estava no seu terreno. Como aos bêbados só os bêbados respondem, dois tenentes e cerca de 50 soldados ofereceram-se como voluntários. Eu nem queria acreditar no que se estava a passar, era uma loucura completa. Pegaram nas armas e munições e puseram-se em marcha em direcção a Chaimite. Ao meu lado estava o médico que nos acompanhava. Olhei para ele e disse, doutor é melhor irmos também, é preciso alguém que esteja sóbrio para olhar por este bando de bêbados. Estava convencido que após alguns quilómetros de marcha com a bebedeira curada, voltávamos para trás.
Foi nessa noite que prenderam o Gungunhana? Nem pensar, respondeu o meu avô, Chaimite ficava a três dias de caminho de onde nós estávamos. Foi uma caminhada desastrosa, faltava comida e água, e nem os comprimidos de quinino tínhamos levado.
O Mouzinho quando lhe passou a bebedeira, orgulhoso como era, não quis dar o braço a torcer, e lá continuamos com muito sacrifício direitos a Chaimite. Era um suicídio, se aparecessem os guerreiros do Gungunhana nenhum de nós ficaria para contar a história.
No dia 28 de Dezembro, à noitinha, avistamos as paliçadas da povoação, e ainda me lembro do que o Mouzinho disse, ou atacamos de surpresa ou estamos perdidos. Dentro da aldeia deveriam estar mais de 500 guerreiros, não percebi de que nos valia a surpresa, quando numericamente era de um para dez, que poderíamos fazer. O médico ainda tentou dissuadi-lo, mas a vergonha de voltar para trás falou mais alto. Desembainhou a espada olhou para nós e disse ao ataque. Todos corremos atrás dele, em direcção à paliçada. Estava convencido que ia morrer ali, mas como era sargento também tinha de dar o exemplo.
Os santinhos estiveram connosco, sem saber como, o Joaquim encontrou um estreita entrada na paliçada, e depois de penetrarmos na povoação, a primeira palhota que encontramos foi a Gungunhana, que rapidamente aprisionámos. A surpresa fora total.
Em pouco tempo ficamos rodeados por uma multidão de guerreiros que ficaram estupefactos ao verem o seu rei preso. O Mouzinho com receio de que algum dos régulos presentes, com pretensões ao reino do Gungunhana tomasse a iniciativa de ordenar um ataque, mandou que os fuzilassem rapidamente.
A seguir sobe a ameaça da espada de Mouzinho, o Gungunhana ordenou aos seus guerreiros que depusessem as armas. O dia estava ganho por milagre, um louco se transformou em herói. A última cena que ficou para a história é a resposta do Gungunhana quando o Mouzinho o mandou sentar no chão, e ele respondeu que não se sentava porque estava sujo. Mas acabou por se sentar à força. O leão de Gaza estava acabado definitivamente.
Fui encarregado de o trazer prisioneiro para Lourenço Marques, para embarcar para o Continente. No final tive pena dele, tinha sido um rei poderoso e reconhecido pelo rei de Portugal aquém pagava vassalagem, agora não passava de um prisioneiro vexado. A ambição perdeu-o.
Levantámo-nos e continuámos o regresso a casa calados, que ficava na Calçada da Estrela. Eu com o pensamento nas imagens do filme, o meu avô possivelmente, em alguma lembrança mais íntima, que não tinha sido oportuna entrar na narração.

terça-feira, setembro 13, 2005

Reflexões e conjecturas

Conjecturas

Estaremos nós sozinhos no Universo? Admito que não, até seria um contra senso cientifico pensarmos ser os únicos ”seres” a quem foi dado tão imensurável lar. Não tenho complexos em admitir a existência de extraterrestres, mas talvez de uma forma diferente do que é habitual.
Quando se deu o Big Bang, milhões de partículas de matéria foram projectadas no vácuo, dando origem ao Universo que todos conhecemos. Se algumas das teorias do aparecimento da vida estiverem certas, a nossa terá vindo do espaço. Estas teorias que não vou aqui explanar, na minha opinião estão bem fundamentadas e são convincentes.
Nesta óptica, a singularidade que esteve na origem do Big Bang, encerraria em si mesma a origem do Universo e logicamente da ”vida”.
Quando da projecção das partículas de matéria, estas teriam sido acompanhadas da projecção dessa essência de “vida” que viria a ficar espalhada por todo o Universo. A sua evolução teria começado mais cedo ou mais tarde conforme a própria expansão do Universo e concludente formação dos diversos sistemas planetários.
Uma evolução que tenha começado mais cedo do que a nossa, originaria “seres” mais evoluídos do que nós, ou o caso contrário. Tanto podemos admitir “seres” num estágio muito superior ao nosso, como outros muito aquém do nosso estado evolutivo.
Por esta teoria, o Universo estará cheio de milhões e milhões de diferentes “seres” conforme a sua evolução e adaptação ao seu suporte de “vida”. É nos impossível imaginá-los fora do nosso mundo sensitivo, só evoluções idênticas se reconhecem.
A ficção cientifica tem-nos trazido imagens dos extraterrestres sempre baseadas no aspecto e intelecto humano, não sei se alguma delas corresponderá à possibilidade de termos sido visitados por algum “ser” com uma evolução não muito diferente da nossa.
Como já disse, o contacto e identificação mutua, dependerá da maior ou menor semelhança do grau evolutivo. Quando se pergunta porque é que os extraterrestres que julgamos nos tenham visitado, nunca contactaram abertamente connosco, a resposta poderá ser dada pela diferença de evolução, ou seja, eles não conseguirem percepcionar-nos, mesmo que nós o conseguíssemos fazer.
O caso contrário também será válido, sermos identificados sem conseguirmos identificar. Aqui poderíamos aceitar a ficção cientifica quando diz : eles estão entre nós e não sabemos.
Variadíssimas são as possibilidades de contacto, com ou não possibilidade de identificação, mas a que nos mais intriga é aquela que é sentida pelo nosso sistema sensorial, os OVNIS.
Francamente é-me difícil compreender o porquê desses “seres” não entrarem em contacto directo connosco. Sendo os seus veículos detectáveis pelos nossos sentidos, fará todo o sentido que os seus ocupantes também o sejam. Por outro lado, parece-me que o seu avanço tecnológico, não se traduzirá um grau evolutivo tão grande e diferente de nosso, que lhes não permitisse nos identificar.
Quem são eles? Simples turistas espaciais ou batedores de uma possível migração evolutiva? Não fazemos a menor ideia, somente sabemos que a sua tecnologia é muito mais avançada do que a nossa.
Muito se tem especulado, desde a simples observação de objectos voadores até aos famosos encontros do 3º grau, mas tudo fica por explicar quando se quer fazer a análise dos factos, as provas irrefutáveis, como por artes mágica desaparecem.
Claro que ao analisarmos o assunto, de certa forma estamos sempre influenciado pelas teorias de um Sagan, que não conseguiu ultrapassar a barreira da materialização do sensitivo, o que o remete para o mundo antecipado de Júlio Verne, com a incongruência em relação a este, que somente quis vaticinar o nosso futuro tecnológico.
Mas seja como for, voltando ao que disse anteriormente, o Universo na minha opinião é povoado de miríades de “seres”, que estarão em permanente evolução acompanhando a própria expansão do Universo, evolução essa que só terminará quando o Universo parar de expandir.
Que acontecerá, perguntarão vocês, quando o Universo parar de se expandir e a evolução terminar? É a resposta mais difícil que se poderá dar, talvez tenha de ser procurada dentro de nós próprios.

quinta-feira, setembro 08, 2005

Reflexões e Conjecturas

O texto que vos venho apresentar hoje, espelho de algumas das minhas reflexões, devido à extensão que poderia prejudicar a leitura, será divido em dois capítulos: Reflexões e Conjecturas, um publicado hoje e o segundo imediatamente a seguir.

Reflexões

Quando pensamos nas nossas origens e nossa evolução até hoje, uma conclusão é evidente, não somos o estágio final, seria muito egocêntrica tal conclusão. De simples ser unicelular, que evoluiu e se transformou em multicelular, e este por sua vez se multiplicou e se transformou em multidões, como se estas fossem macro células de um todo a que chamamos humanidade, esta multiplicação não deixará de alcançar novos agrupamentos formados por células, cada uma destas representando uma multidão. Se a humanidade já é considerada grande essa futura forma terá uma dimensão inimaginável. Estaremos em presença da passagem de um microcosmo para um macrocosmo.
É nesta perspectiva evolutiva da “vida”, que nasce a questão: crescer para onde, quando o suporte da sua existência tende para o esgotamento a curto prazo, no imenso tempo da evolução.
A evolução não é uma coisa que aconteça conscientemente, porque fazemos parte integrante dela, só a consciencializamos por comparação do antes com o depois. Fazendo fé nesta premissa, estou convencido que a vontade que leva o homem para o espaço, é uma manifestação da inconsciência da evolução. Não foi o acaso, capricho ou ambição que presidiu ao início da exploração espacial, isso é pensamento mesquinho do agente actual, ainda dependente da multidão onde pertence, são os desígnios da própria evolução.
A aventura espacial, o apalpar o pulso ao espaço, para tentativa futura de procurar novos suportes de “vida” idênticos aos nossos, para as nossas multidões, é um erro do momento, que o futuro se encarregará de corrigir.
Tal como nós o nosso planeta parece-nos, o único corpo possível para albergar as celular que nós somos, mas tal como as células que nos deram origem, também nós nos podemos transformar criando células com as características necessárias para existirem com um suporte de “vida” completamente diferente.
Num futuro distante, poderá o nosso corpo já não vir a depender da água mas sim de uma radiação qualquer, mutações poderão alterar o nosso aspecto físico, poderemos perder todos ou parte dos nossos sentidos substituindo-os por outro qualquer processo de percepção, o nosso cérebro passar a ter novos padrões de funcionamento etc. Tudo isto é exequível, pois já fomos objecto de parte destas possíveis transformações.
A era espacial que estamos vivendo é o buraco da fechadura da porta que nos conduzirá ao estágio seguinte. Isto é uma verdade irrefutável, a terra como qualquer outro planeta caminha para o seu fim, enquanto suporte de “vida”. E mesmo que a humanidade se fosse adaptando às transformações do planeta subsistiria sempre o problema do número inadequado aos recursos, salvo a humanidade enveredasse ela própria pelo auto processo da selecção natural.
A auto selecção natural, bastante verosímil no tipo de sociedade em que vivemos, é contudo contrária à selecção da Natureza, onde o egoísmo humano dá lugar à harmonia cósmica.
Segundo Hubble o Universo está em expansão permanente e nós como parte integrante dele não poderíamos ficar alheios a essa expansão.
A evolução da “vida” insere-se na expansão do Universo, ao qual foi estabelecido um momento de criação, mas que não se sabe qual o fim. O mesmo se passará com a “vida”, foi nos dado um ponto de partida só que não conhecemos o destino final.
Mas uma coisa devemos tomar em conta, todo este pensamento se baseia na criação de uma etapa pelo próprio homem, a singularidade inicial, única forma de compreensão do Universo pelo mundo sensorial, da qual discordo veementemente, mas isso é outro tema, talvez para abordar mais tarde.

segunda-feira, setembro 05, 2005

Nem tudo o que luze é ouro



Nunca um adágio popular esteve tão certo, como quando assistirmos ao desastre provocado pelo furacão Katrina nos Estados Unidos. A Mãe Natureza que até aqui parecia querer descriminar os que flagelava, ficando-se pelos pobres, como se os ricos estivessem imunes aos seus estragos, resolveu rever a sua actuação e mostrar que tanto os pobres como os ricos, especialmente estes por serem quem mais a agride, estariam todos à sua mercê.
Quando, na devastação provocada nas zonas pobres atingidas pela fúria dos elementos, verificamos o estado deplorável em que as populações ficam e escassez de ajuda a que ficam sujeitas, acabando muitas delas por sucumbirem pela falta de assistência, rotulamos o local como terceiro mundista, onde os valores humanos não contam.
Tudo isto admitimos com naturalidade, quando vimos as tragédias das cheias na América do Sul ou em África, e até não nos impressiona muito se a comunicação social não fizer disso romance.

Mas nos Estados Unidos, na nação mais rica e poderosa do mundo, a nação da democracia, dos valores humanos, da respeitabilidade pelo cidadão, do altruísmo, enfim, tudo o que eles apregoam que são, ocorrer em face de uma tempestade, devidamente motorizada, completamente previsível até ao mais pequeno detalhe, só falhando o prognóstico da intensidade que foi inferior ao previsto, uma tragédia humana igual às que ocorrem no terceiro mundo, era impensável.
O mundo nem ficaria chocado com actuação propriamente da Natureza, pois já vai sendo hábito ocorrências dessas, mas dispondo de todos os recursos materiais possíveis e abandonar os sinistrados à sua sorte durante dias, sem fazer o mínimo esforço para dar o mínimo necessário para sobreviver, como água, repito a água, que não custa nada, enquanto o seu presidente continuava de férias, ficamos todos de boca aberta.
Fechámos a boca ao vir-nos à ideia que os Estados do Sul já poderiam não fazer parte da confederação, realizando um antigo sonho e que os Ianques voltavam a repetir as acções como da primeira tentativa. Mas pelos noticiários verificámos que não, tudo continuava na mesma, quem sabe uns mais americanos do que outros, mas isso é problema deles.
Mas se os factos só por si nos pareciam um pesadelo difícil de aceitar, ao assistirmos ao apelo que América fez à Europa, pela Sky News, pedindo toda a ajuda possível, cobertores, comida etc. como é hábito se fazer para os países mais pobres de África, como a Etiópia, isto era inimaginável.
Mas afinal quem são os Americanos? Tudo não passa de uma fachada, encenada por Hollywood? Tanta força militar, tantos biliões ao serviço da guerra e dos interesses, tanta arrogância, e a final não passarão de uns pobretanas?
O Katrina foi um mal que veio por bem, possibilitou-nos ver o americano que desconhecíamos, foi uma espécie de descobrir a careca.
Nunca foi imaginável ver os americanos estenderem a mão à caridade, será que até vão aceitar o auxílio oferecido pelos Chavez e pelos Castros? Penso que não, não passando tudo isto de uma manifestação da sua desorganização interna.
Esta prova de desorganização manifestada, vem por em causa toda a sua logística civil, ficando-se só pela segurança dos canhões e das bombas. E se em vez de uma tempestade o desastre humanitário tivesse sido provocado por uma bomba inimiga?
Os americanos nunca tiveram a guerra em casa, fizeram-na sempre na casa dos outros, são mesmo capazes de não estar preparados para essa eventualidade. Na segunda Grande Guerra Mundial enquanto os soldados americanos combatiam e morriam na Europa e na Ásia, na América o compasso do dia a dia era marcado pelo swing, enquanto os senhores enchiam os bolsos com o negócio da guerra. A guerra o que é isso?.
Mas voltemos ao presente, e no presente aconteceu o inimaginável, a América mostrou a sua vulnerabilidade. No futuro próximo, este deslize vai-lhe custar caro.

este texto é publicado simultaneamente no Da Mão para a Boca

Fotos Reuters