quarta-feira, agosto 31, 2005

Lembranças XV

A guerra encerra em si dramas que pela sua dimensão minimizam a própria morte. É o caso do ferido que tinha chegado paraplégico da Guiné e ocupava a cama 5 da enfermaria 2. Um rapaz atleticamente bem constituído, amante e bem sucedido no desporto, bem parecido, cabo do Regimento de Paraquedistas.
A sua lesão da coluna situava-se ao nível das primeiras cervicais o que lhe paralisou o corpo limitando-lhe o movimento dos braços, ficando dependente de terceiros para se alimentar. A tristeza nos seus olhos, e o silêncio a que se acometera eram a demonstração do seu inconformismo e desespero perante a crueldade do destino.
Nós tínhamos soldados para nos auxiliarem na higiene pessoal dos doentes impossibilitados de a fazer e ministrarem as refeições aos que não tinham condições para comerem sozinhos. Claro que estes soldados que estavam de passagem, por vezes nem um mês permaneciam no serviço, não tinham a sensibilidade necessária para lidar com as situações mais difíceis, tocando muitas vezes a grosseria, pensavam somente na hora de se verem livres de tudo aquilo.
Fiquei tão impressionado com o cama 5, um jovem privado de toda a sua juventude, que passei eu próprio a fazer-lhe a higiene diária, que não era fácil num corpo adormecido, e dar-lhe as refeições. Procurava suavizar-lhe o seu sofrimento interior, fazendo tudo com a maior naturalidade, como se o que lhe estava a fazer, fosse o serviço normal de rotina para a generalidade dos doentes da enfermaria. Enquanto lhe dava a comida com uma colher, conversava com ele ininterruptamente de todos os assuntos desde o futebol ao cinema, das enfermeiras do bloco operatório, do tempo, da praia, tudo era assunto para a conversa, como se ele não estivesse na situação em que se encontrava, procurando sempre a sua interlocução.
Numa das vezes em que estava a dar-lhe de comer uma sopa, ouviu-se uma grande algazarra no corredor, provocada por três outros paraquedistas que o vinham visitar.
Ergueu a cabeça ligeiramente de lado para apurar o ouvido e ao reconhecer os amigos, fixou os olhos na porta da enfermaria, cheios de novo de brilho, revestiu o semblante com um sorriso e aguardou a sua chegada.
Ao vê-los entrar com aquela euforia própria da idade, a cama 5 estava mesmo de frente para a porta, sorriu para eles e gritou qualquer grito de saudação conhecido entre eles, ao qual os outros responderam entusiasticamente.
Existem coisas que nós mesmo sem as sabermos explicar as compreendemos. O doente procurava falar com os companheiros o mais à vontade possível, e à pergunta destes de onde estava ferido, respondeu que tinha sido atingido nas costas, mas sem mencionar o local nem a gravidade. Os amigos não faziam a menor ideia do seu estado e ele também não queria demonstrá-lo.
Quando ia pegar na colher para lhe dar a sopa, senti a mão dele segurar a minha, e compreendendo o significado do gesto, deixei dissimuladamente que ele pegasse na colher depois de a ter enchido.
Não querendo mostrar aos amigos a situação em que se encontrava, a dependência de terceiros para comer, tentou levar sozinho a colher à boca. Toda a enfermaria, que conhecia o seu estado, ficou de respiração suspensa a olhar para ele. Num primeiro impulso, após agarrar a colher, conseguiu mover o antebraço levantando a colher e em seguida tentou levantar o braço para a levar à boca, mas este movimento ficou parado no tempo a meio do percurso, travando-se então uma luta de vida ou de morte entre a vontade e a possibilidade.
Com o braço semi levantado, o esforço da vontade foi tão grande e angustiante que nos segundos que durou, o suor aflorou abundantemente às temperas, o sofrimento do esforço estampou-se-lhe no rosto e as lágrimas da frustração começaram a escorrer-lhe pelo rosto.
Depois, dá-se o impossível, pela última vez, não sei como, num gesto derradeiro de raiva, consegue mover o braço e atirar com a colher pela enfermaria fora indo parar ao pé da porta. Fecha os olhos, deixa descair a cabeça, e assim ficou durante os cinco meses seguintes definhando dia a dia até morrer.
Tudo fizemos desesperadamente durante cinco meses para lhe restaurar o ânimo, mas tudo foi em vão, ele resolvera morrer.
O nosso tempo de serviço foi passando, com uns dias que nos pareciam mais longos do que outros, e a nossa mobilização para irmos para a guerra nunca mais chegava. Procuramos saber o que se passava, pois já por duas vezes estivéramos nos primeiros lugares da lista de mobilização e nada tinha acontecido. Instado, o sargento mor enfermeiro informou-nos que possivelmente nunca iríamos para a guerra, pois o director do hospital exigia que não fossemos mobilizados, tinha muita falta de pessoal e nós éramos considerados uns enfermeiros indispensáveis no hospital. Só com um ano de serviço fomos promovidos a furriéis (primeiro grau dos sargentos) o que acontecia pela primeira vez no exército português, normalmente os cabos milicianos só eram promovidos a furriéis quando embarcavam para o ultramar ou tinham completado 18 meses de serviço.
Uma vez por mês, os feridos recebiam a visita do Movimento Nacional Feminino. O movimento era formado por senhoras da mais alta sociedade portuguesa, que uma vez por mês substituíam o seu chá das cinco, por uma visita guiada pelo secretário do Ministro do Exército aos combatentes feridos, levando-lhes a sua solidariedade que consistia em duas ou três revistas e dois pacotes de bolachas, e hipocritamente anotavam as necessidades apresentadas pelos doentes, como se a resolução dessas necessidades fosse o principal empenho das suas vidas.
Era uma feira de vaidades, vestidas como se fossem para uma importante recepção, a competição feminina tem destas coisas, não deixar fugir uma oportunidade para exibir as toilletes. Caminhavam em passo cadenciado e apressado, pois o tempo disponível era cronometrado, e com gestos standarizados e precisos, tipo ritual, abeiravam-se dos doentes aquém perguntavam igualmente a mesma coisa. Como se chama?, onde foi ferido?, qual o seu ferimento?, está a ser bem tratado?, precisa de alguma coisa?. Findo o interrogatório entregavam um saco com as revistas e as bolachas, e em coro despediam-se. As suas melhoras.
À volta delas o secretário do Ministro do Exército e mais um ou dois oficiais de patente inferior, desfaziam-se em ridículos salamaleques e vénias, bem como o director do hospital, sempre aflito com alguma coisa que corresse mal durante a visita.
Mas nada corria mal, as enfermarias estavam impecavelmente limpas, os doentes de pijama lavado, barbeados e penteados, um ou outro cujo aspecto dos ferimentos pudesse incomodar as senhoras, ficava escondido por um biombo.
À saída da enfermaria o director dirigia-se a nós, mas ao invés do horroroso tratamento por tu, dizia num tom afável, muito bem senhor enfermeiro. Nas enfermarias do Galrinho a visita atingia o máximo do clímax, pois ele ia ao Jardim da Estrela mais um ou dois soldados e roubavam todas as flores que podiam para enfeitar a enfermaria. As madames deliravam. Em fim, coisas de um governo que fazia de tudo para encobrir a verdade da realidade.

quarta-feira, agosto 24, 2005

Os doze de Inglaterra

Como bons medievais que fomos, também tivemos as nossas novelas de cavalaria, de entre as quais escolhi para este texto, Os Doze de Inglaterra, imortalizados por Camões nos cantos dos Lusíadas, que não se poupava a esforços para imortalizar os nosso heróis, reais ou de ficção.
Na Inglaterra doze damas sofreram graves agravos à sua honra por doze gentis homens da corte inglesa que se gabaram daquilo que gostariam ter feito mas não o fizeram, e para esconder a vergonha da recusa, difamaram-nas impunemente
As damas ofendidas não encontraram quem as desagrave-se nem parente nem amante, tal era a fama dos difamadores como guerreiros invencíveis. Desesperadas por não conseguirem encontrar quem desafiasse os doze fanfarrões ingleses, para em terreiro de luta, pelas armas, tentasse restituir a sua honra, queixaram-se ao Duque de Lencastre, que depois das ouvir, sugeriu que fossem convidados doze cavaleiros portugueses para tal empresa.
O Duque de Lencastre conhecia muito bem os cavaleiros portugueses, pois havia estado em Portugal comandando as tropas inglesas que tinham ajudado o Mestre de Avis contra os Castelhanos. Foi o Lencastre que introduziu em Portugal a célebre táctica militar do quadrado que nos safou em Aljubarrota. Na sua estadia não lhe foi estranha a célebre Ala dos Namorados, capitaneada pelo Nuno Feroz, como foi apelidado pelo poeta D. Nuno Alvares Pereira, composta pela fina flor da juventude portuguesa, que não fosse a sua gabarolice, no que continuamos muito pródigos, a sua intrepidez faria relembrar os antigos ideais da cavalaria.
Decidida a escolha foi enviado ao rei de Portugal o convite para a presença dos doze cavaleiros em Inglaterra para tão nobre fim. D. João não hesitou em aceitar o convite, pois via nele, para além de um alta honra para a cavalaria portuguesa, a possibilidade de mostrar os seus cavaleiros e quem sabe se algum nobre inglês se interessa-se pela compra do seu passe, o que vinha mesmo a calhar no estado de penúria em que se encontravam as finanças reais.
Não perdeu tempo. Nomeou Álvaro Gonçalves Coutinho, conhecido por O Magriço, para liderar o grupo e ordenou-lhe que seleccionasse os restantes onze, os mais destros nas armas e se possível os mais bem parecidos. A escolha não foi fácil pois quando cheira a rabo de saias os candidatos são mais que muitos. Desiludindo uns, insultado por outros, lá conseguiu encher de alegria os onze eleitos.
Mas quando se trata de mulheres, os portugueses que não brincam em serviço, quiseram logo saber qual a dama que cabia a cada um defender, por certo nem todas seriam igualmente dotadas pela natureza.
Como não havia retratos, e para precaver futuras altercações, O Magriço resolveu o assunto por sorteio ficando cada um nas mãos da sua sorte, que se não fosse a melhor não se poderia queixar pois a sorte era a sua.
Feitos os preparativos e as despedidas, lá embarcaram de armas e bagagens com todas as honrar, pompa e circunstância os doze para Inglaterra, no meio de uma fanática alegria popular, que faria inveja aos jogadores de futebol de hoje, quando vão a caminho do estádio, e de algumas lágrimas femininas de paixões escondidas.
A via marítima foi a escolhida não fosse a rapaziada, ao atravessar Castela, envolver-se em alguma arruaça e ficar alguém lesionado que não pudesse continuar a viagem, pois o rei, como as finanças não iam bem, o nosso eterno problema, não tinha dado dinheiro para contratar nenhum suplemente. Um orçamento de rigor.
A sua chegada a Inglaterra, apesar da divulgação feita pelos corretores de apostas, não foi muito calorosa, tendo até quase passada despercebida, não fosse a insistência do O Magriço, em ir à frente do grupo com um pendão dizendo Força Portugal.
O Duque de Lencastre acolheu-os calorosamente no seu castelo pondo ao seu dispor óptimas instalações e um relvado para treinarem e estrebarias de primeira para os cavalos, mas teve o cuidado dos instalar numa ala afastada da parte central do castelo, onde se encontravam os aposentos das damas, não fossem os portugueses, no dizer do poeta, quererem usá-lo em vez de experimentá-lo.
O dia da contenda não se fez esperar, pois os portugueses estavam a expensas do Lencastre que não era propriamente um mãos largas, e estava mais ansioso pelo resultado das apostas do que realmente na honra das damas.
No dia marcado para a lide com os doze ingleses, os portugueses armaram-se de elmos, lanças, espadas, grevas e de arneses, tudo como mandava o nosso modesto figurino da época. As damas ofendidas vestiam exuberantes vestidos de seda de cores garridas cobertas de ouro e jóias para darem bem nas vistas, como que a dizer. Se pensavam que não iríamos ter paladinos lá porque toda a gente da corte saber das nossas aventurinhas de alcova, estão enganados.
O Rei inglês estava presente com toda a corte mais inúmeros nobres vindos de toda a Inglaterra. O Lencastre não se poupara a esforços, e o recinto estava ricamente ornamentado, cheio de slogans exortando os ingleses. A claque, composta na sua maioria por servos da gleba pagos para gritarem pelos ingleses, moda que pegou até hoje, encontrava-se no peão, enquanto o rei e os nobres estavam na bancada central.
Os portugueses foram os primeiros a entra no recinto. Uma forte assobiadela misturada com alguns insultos deram-lhes as boas vindas, mas ao verem os doze sozinhos, sem pajens, sem arautos, nem comitiva, tudo acabou numa gargalhada geral de escárnio. As figuras que eram obrigados a fazer os nossos cavaleiros por causa do rigor financeiro nas despesas imposto por D. João I.
A entrada dos ingleses foi delirante, a multidão gritava freneticamente os nomes dos cavaleiros, agitavam bandeiras e pediam a cabeça dos portugueses. Vaidosos nas suas armaduras desenhadas pelo armeiro francês mais célebre, o Armani da época, pavoneavam-se nos seus cavalos cobertos com fantásticos mantos com as suas cores, desenhados também pelo tecelão italiano na berra, uma espécie de antepassado do Versace. Até aquele dia ninguém os tinha desmontado, eram os principais recordistas da cavalaria inglesa, uns crakes, treinados por um mister que contava no seu curriculum com mais de cem vitórias no campeonato dos torneios. Um Mourinho de Cantuária, até na fanfarronice era parecido.
Os arautos deram o sinal para se prepararem, de um lado do terreno os ingleses do outro os portugueses que se encontravam tão nervosos como os seus cavalos que não paravam de relinchar e aliviar a tripa. A um gesto do Lencastre foi dado o sinal de começar a contenda.
Os cavaleiros, tanto de um lado como do outro, lançaram-se numa correria de lanças em riste, na procura do corpo do adversário, mas o pó levantado era tanto que quando se deu o embate, não se viam os cavaleiros, não se sabia quem tinha sido derrubado, se algum tinha morrido, não se via nada.
Todos os espectadores ficaram em suspenso, na espera do assentar do pó, para verem o resultado. Quando o pó começou a dissipar-se pode se ver os cavalos dos ingleses à procura dos seus donos, ou a afastarem-se envergonhados com a derrota do seu cavaleiro. Dos knights ingleses derrubados só um conseguia estar de pé no chão dirigindo-se de montante em punho ao único cavaleiro português derrubado, O Magriço. Na eminência do golpe, e perante a aflição dos companheiros, O Magriço, no momento em que o inglês levantava o montante para desferir o golpe fatal, mesmo deitado por terra, desferiu-lhe um golpe bem à portuguesa, um pontapé entre pernas, sitio que não estava protegido com a armadura. O Inglês ficou paralisado com a dor permitindo ao Magriço derrubá-lo com outro pontapé, obrigando-o em seguida a render-se. Chaucer, que estava no peão também a assistir, impressionado com a valentia do português, e para não vir a ficar atrás de Camões desceu ao terreiro e vitoriou O Magriço.
Acontecera o inimaginável, era como o Benfica perder com o Cascalheira no Estádio da Luz. Foi a derrota total dos ingleses e a vitória completa dos portugueses. O mister dos ingleses foi ali mesmo despedido e condenado ao exílio.
As damas desagravadas das ofensas sofridas e com a sua honra restaurada, saltavam nas bancadas e acenavam para os seus heróis, fazendo-lhes promessas com os olhares, bem como os poucos apostadores, na sua maioria escoceses claro, que tinham escolhido os portugueses, mas entre os ganhadores estava o esperto Lencastre esfregando as mãos de contente. Tinha ganho uma pipa de massa.
Grande foi a festa dada no castelo do Lencastre, opíparo banquete com a melhor caça, o melhor vinho francês, os melhores ministreis para animar o baile e a autorização para os portugueses visitarem a ala do castelo onde estavam os aposentos das damas. Uma farra que durou dois dias e duas noites, pois que ao terceiro acabou não por falta de vontade, mas porque o Lencastre achou que já chegava de gastar dinheiro.
Em Portugal D. João I depressa teve conhecimento do resultado da peleja, com a chegada apressada dos emissários de diversos senhores europeus com propostas para a compra dos passes dos cavaleiros portugueses, afim de fortalecerem as suas equipes, até o rei de Castela de candidatou à compra, era preciso ter um grande descaramento.
D. João não cabia em si de contente, coitado, ao verificar que o seu investimento na ida dos cavaleiros a Inglaterra, lhe ia trazer com a venda dos passes, um retorno lucrativo como nunca imaginara. A alegria era tanta que foi nessa altura, que com a ilustríssima lencastrense, sua esposa, fez o segundo membro da sua ínclita geração.

domingo, agosto 21, 2005

Aniversário


Hoje faço um ano, que a instâncias da minha mulher, publiquei pela primeira vez na Blogesfera. Em boa hora o fiz, caso contrário, possivelmente não teria a oportunidade de conhecer pessoas tão interessantes, tão cultas e tão sensíveis como viria a suceder, criando-se entre todos uma verdadeira empatia.
Foram meses muito simpáticos de convivo blogosférico, que teve o seu ponto alto, como reconhecimento dessa empatia, o encontro pessoal no jantar do Fraternidade. Para todas as amigas um grande beijo, para os amigos um grande abraço. O texto de hoje é a republicação do meu primeiro texto, a 21/8/2004, ainda na Questãocontinuada.

A inteligência

A inteligência é a capacidade que permite a adaptação e o domínio de novas situações. Manifesta-se na compreensão, aplicação, interpretação e estabelecimento de relações e de conexões que tenham sentido. H.Remplein

A inteligência é o espírito universal da Natureza que se manifesta desde o mais ínfimo e simples organismo até ao mais complexo, de que fazem parte todos os seres vivos, que no seu conjunto formam aquilo a que chamamos vida, dependendo esta do equilíbrio harmonioso entre aqueles.
Os cientistas continuam a procurar o Santo Graal da Humanidade, ou seja, qual foi o nosso ancestral que pela primeira vez teve o privilégio de usar a inteligência, o que o distinguiria das outras espécies animais.
Esta procura da primeira inteligência só vem provar que a maioria das pessoas pensa que a inteligência é propriedade exclusiva do género Homo, mais especificamente do Homo sapiens sapiens se a graduarmos quantitativa e qualitativamente.
Atribuir ao Homo sapiens sapiens a exclusividade da inteligência, parece-me um fundamentalismo científico egocêntrico, mas qualificá-la em relação aos nossos antepassados, o erro é ainda muito maior.
Será que o Homo sapiens sapiens actual é mais inteligente que o Homo habilis, só porque este não tinha computador? Ou que o género Australopitecos era menos inteligente que o género Homo por não possuir um posição erecta tão desenvolvida?
Comparações impossíveis. A inteligência manifesta-se de acordo com as condições em que se vive e do que é necessário à sobrevivência. O que para nós não representa nada de importante como a feitura de micrólitos, estes objectos, contudo, foram indispensáveis à vida de quem os fabricou e são manifestação evidente da inteligência.
É a inteligência que permite o desenvolvimento tecnológico, e este o trampolim para a evolução seguinte.
Os nossos ancestrais, só com muita inteligência conseguiram evoluir, permitindo que nós sejamos o que hoje somos.
Viajemos ao futuro ao encontro do ser que habitará a Terra daqui a um milhão de anos, e imaginá-lo a encontrar um fóssil do Homo sapiens sapiens actual.
Não sei como será esse ser, mas de certo será tão diferente de nós que não pertencerá ao género Homo, mas a outro género devido às suas características muito mais evoluídas em relação a nós.
Possivelmente, na sua escala classificativa da inteligência, vai-nos classificar da mesma forma que nós classificamos o nosso ancestral Australopitecos. O computador para ele terá a mesma importância que uma pedra lascada tem para nós, tal será o seu avanço tecnológico. Da mesma forma que nós fazemos, ao tentarmos encontrar um ponto de partida para a inteligência, esses seres futuros, também possivelmente irão demarcar uma etapa a partir da qual a sua super inteligência começou a desenvolver-se.
Rude golpe no egocentrismo do Homo sapiens sapiens, que se julga ser mais inteligente do que os seus ancestrais. Deixar de ser o último patamar da inteligência, para passar a ser somente um degrau.
Os nossos ancestrais não podem defender a sua inteligência, esta é somente a que o Homo sapiens sapiens quer que fosse.

A inteligência não é exclusividade do Homo sapiens sapiens (homem moderno). Ela sempre esteve presente em todos os ancestrais do homem coma mesma vitalidade que existe hoje. Não era inferior, somente se manifestava de acordo com o ambiente em que viviam esses ancestrais e as suas próprias necessidades. A inteligência que dominou o fogo será inferior à que inventou a luz eléctrica? A.D.


Foto do André, no jantar do Fraternidade

domingo, agosto 14, 2005

Abelardo e Heloísa


O romance entre Abelardo e Heloísa situa-se no período da Idade Média.
Pedro Abelardo nasceu em 1079 na Bretanha. Aos 16 anos foi estudar para Paris, onde depois de frequentar a Escola Catedral de Notre Dame, tornou-se em pouco tempo muito conhecido. Como autêntico escolástico, a dialéctica proporcionava-lhe o maior prestígio.
Quando estava próximo dos 40 anos, o seu caminho cruzou-se com o de uma donzela formosa e inteligente, numa tarde em que Heloísa saiu para passear com a sua criada. Quando os olhares dos dois se cruzaram, o coração de Heloísa bateu mais forte. Desde esse encontro, Heloísa nunca mais conseguiu esquecer Abelardo.
Fingindo estar doente, dispensou os seus antigos professores e passou a interessar-se pelas mesmas obras filosóficas que Abelardo, na esperança de que este seria atraído pelos seus estudos e viria até ela.
Abelardo tornou-se amigo de Fulbert, cónego de Notre Dame, tio e tutor de Heloísa que logo o aceitou como o mais novo professor de sua sobrinha, hospedando-o em sua casa, em troca das aulas nocturnas que ele lhe daria. Em pouco tempo essas aulas passaram a ser ansiosamente aguardadas, e contando com a confiança de Fulbert, passaram a ficar a sós. Fulbert ia dormir, e a criada de Heloísa retirava-se discretamente para o quarto ao lado.
O fulgor amoroso levou um dia Abelardo a tirar o cinto que prendia a túnica de Heloísa e os dois se amaram apaixonadamente. A partir desse momento passou a desinteressar-se de tudo, só pensando em Heloísa, descuidando as suas obrigações de professor. A propósito deste período da sua vida Abelardo fala com toda a franqueza: “Estivemos primeiro juntos sob o mesmo tecto e em seguida os nossos corações uniram-se. Aparentemente entregues ao estudo, abandonámo-nos inteiramente à nossa paixão. Os livros estavam abertos diante de nós, mas nossas palavras referiam-se mais ao amor que às letras; os beijos eram mais numerosos do que as explicações dos textos”.
Abelardo acabou por não aguentar simultaneamente as noites de amor e os trabalhos de uma dura vida diária. A inspiração desaparecia, os seus cursos tornavam-se menos interessantes. Depressa toda a cidade ficou ao corrente do romance e quando, por sua vez, Fulbert compreendeu o que se passava, expulsou imediatamente Abelardo da sua casa.
No entanto isso não foi suficiente para separá-los. Heloísa preparou poções para o seu tio dormir e, com a ajuda da sua criada, Abelardo foi conduzido ao porão, local que passou a ser o ponto de encontro dos dois e ninho de amor.
Uma noite, porém, alertado por outra criada, Fulbert acabou por descobri-los. Heloísa foi espancada, e a casa passou a ser cuidadosamente vigiada. Mesmo assim o amor de Abelardo e Heloísa não diminuiu, e eles passaram a encontrar-se, para satisfazer os seus desejos, onde pudessem, em sacristias, confessionários e catedrais, os únicos lugares que Heloísa podia frequentar sem acompanhantes a seu lado.
Quando, algum tempo depois, Heloísa ficou grávida, resolveram casar-se. O casamento foi realizado secretamente em Paris, na presença de Fulbert . No entanto este casamento secreto de modo algum agradava ao cónego Fulbert, que não se cansava de falar nisso e acabando por tornar a vida tão insuportável a Heloíse que Abelardo a enviou para o convento onde fora educada.
Fulbert supondo que o marido da sobrinha se queria assim libertar das suas obrigações, resolveu dar um fim àquilo tudo. Contratando dois carrascos pagou-lhes para invadirem o quarto de Abelardo e durante a noite castrarem-no.
O amor de Heloísa permaneceu tão ardente como antes, escrevendo-lhe numerosas cartas cheias de paixão. Mas qual podia ser a resposta do pobre filósofo desesperadamente desmasculinizado? Escreveu-lhe então uma carta paternal em que a exortava a resignar-se à sua sorte. “Se, nas coisas de Deus, sentes necessidade da minha direcção e de conselhos, diz-me o que desejas saber; responder-te-ei em toda a medida das luzes que Deus quiser conceder-me”. Na sua carta já nada se encontra do antigo amante apaixonado; é o dialéctico que de novo se revela.
O coração a sangrar de Heloísa não esperava estas sábias palavras. Numa outra carta fala-lhe ainda do ardente amor que não consegue reprimir, embora entretanto se tenha tornado madre do seu convento.
A resposta do infeliz Abelardo foi uma severa homilia. “Se queres conservar a esperança de um dia te unires mim na felicidade eterna, chora pelo teu salvador, e não pelo teu sedutor”.
Para tentar amenizar a dor que sentiam pela falta de um do outro, ambos passaram a dedicar-se exclusivamente ao trabalho. Abelardo construiu uma escola-mosteiro ao lado da escola-convento de Heloísa. Viam-se diariamente, mas não se falavam nunca. Qual expiação pela ousadia de um ardente amor proibido.
Abelardo morreu em 1142, com 63 anos, Heloísa ergueu um grande sepulcro em sua homenagem, e quando faleceu algum tempo depois, foi sepultada ao lado dele.
Conta-se que, ao abrirem a sepultura de Abelardo, para ali depositarem Heloísa, encontraram o seu corpo ainda intacto e de barcos abertos, como se estivesse aguardando a chegada dela.

sexta-feira, agosto 12, 2005


A minha trintinha faz anos hoje.
Um grande beijo do pai e votos de
tudo bom na vida para ela.

domingo, agosto 07, 2005

Ensaio sobre a amizade virtual

A frequência com que hoje em dia se vê ser utilizado o virtual e a sua consequente aceitação, levou-me a meditar no fenómeno, quais as origens e consequências.
Definido o virtual como o possível, o susceptível de se realizar, existente como potencialidade ou faculdade e não como acto, exclui o concreto, admitindo só a hipótese futura.
O emprego do termo, amigo virtual, para definir aquele que existe e não se conhece fisicamente, é um erro, quanto muito poderia definir a possibilidade futura da amizade.
Pelo que tenho lido do emprego do termo, amigo virtual, o sentido muitas vezes dado, não é mais do que a criação, no imaginário, de uma amizade desejada, de forma tão intensa que esta pode tender a tornar-se numa realidade inexistente.
Isto acontece mais frequentemente com as pessoas que sofrem de solidão, incapazes no mundo real de ultrapassar esse sofrimento, procuram colmatá-lo com a criação de um ou mais amigos virtuais, esquecendo-se que a virtualidade é uma hipótese e não a concretização.
Estas amizades, mantidas só pela comunicação não presencial, sem qualquer espécie de vivência, correm o risco de serem uma frustração maior se forem consideradas mais do que um simples conhecimento simpático ou mesmo muito simpático, mas nada mais.
Querer transformar um conhecimento em amizade virtual é transformar o concreto numa possibilidade.
As amizades não se criam, florescem espontaneamente, produto da identificação mútua de interesses, comunhão de pontos de vista, modo de encara a vida etc., que por sua vez fomenta o aparecimento de uma afectividade recíproca.
Viver com o virtual, é viver com uma susceptibilidade de realização da própria vida, virando as costas à realidade que ela encerra.
Mas não é só na amizade que o virtual se manifesta, começa a tomar forma para tudo o que se deseja mas não existe, mas que sem existir possa tomar parte nas nossas vidas.

Uma sugestão deixo aqui, passem do mundo virtual para o real, convivam, conversem, troquem ideias, não fiquem na vossa concha do anonimato. Como alguém disse, da discussão nasce a luz, e a luz pode-nos mostrar um grande amigo que sem ela nunca o encontraríamos.

Publicado também no Da Mão Para a Boca