segunda-feira, fevereiro 25, 2008

Ayurveda


Os especialistas garantem que, graças às descobertas da ciência médica, o homem moderno caminha na direcção da quarta idade. O ideal alquímico da vida eterna pode ter ficado para trás, mas não há quem não sonhe em viver mais e melhor. No mundo de hoje, a saúde – esta fonte natural nem sempre renovável – passou a ser o bem mais precioso. A Ayurveda, uma ciência indiana tão antiga quanto o homem, define a saúde como uma condição de harmonia interna e externa capaz de habitar o ser humano no buscar dos seus objectivos mais profundos e permanentes. Para a medicina Ayurveda, ser saudável é uma condição normal e toda a terapia deve ser baseada no restabelecimento desse estado natural. Por isso, é também chamada de”natureza que restabelece”. Vinod Verma (director da New Way Health Organization na Índia)

Ayurveda é o nome dado à ciência da saúde mais antiga do mundo, desenvolvida na Índia há cerda de 3.000 anos. Em sânscrito Ayur quer dizer vida e veda ciência. Assim Ayurveda é a ciência da vida.

A Ayurveda foi desenvolvida a partir da época de Buda, no século V a.C. baseada no empirismo e no racionalismo da observação dos fenómenos naturais e das suas influências no ser humano. Originária da Medicina Védica onde a religião, mitologia, magia e a medicina são inseparáveis o que lhe dava um carácter mágico-religioso, a Ayurveda propõe uma vida em harmonia com as leis da natureza mas também uma vida útil à sociedade como um todo. Na Medicina Ayurvédica, saúde é um estado de felicidade e para o alcançar o ser humano deve trilhar um caminho de autoconhecimento.

A Medicina Ayurvédica é conhecida como a mãe da medicina, pois seus princípios foram a base, posteriormente, do desenvolvimento da medicina tradicional chinesa, árabe, romana e grega. Também o Japão teve necessidade de fazer intercâmbio com os indianos, para criar uma medicina barata para atender às suas populações muito pobres.

Esta deve ser a principal causa para o desconhecimento ocidental desta importante medicina oriental. Por de trás dela, não estão as multinacionais dos fármacos, que estabelecem o preço da saúde. O custo insignificante da Medicina Ayurveda tornou-a acessível a todos os pobres, odiada por todos os laboratórios e suspeita na eficiência, pela medicina convencional ocidental.

Na Índia, onde a Medicina Ayurvédica que tem a mesma importância que a medicina tradicional tem no Ocidente, é aprendida nas universidades. Para a formação completa, são necessários cinco anos e meio. A primeira escola a ensinar Medicina Ayurveda foi a Universidade de Banaras, por volta de 500 a.C. Foi ali que a grande Samhita, ou enciclopédia de medicina, foi escrita.

Estima-se que 80% da população da Índia, seja assistida pela medicina Ayurveda.

A doença para a Ayurveda é mais que a manifestação de sintomas desagradáveis ou perigosos à manutenção da vida. Ayurveda, como ciência integral, considera que a doença inicia-se antes de chegar à fase em que ela finalmente pode ser percebida.

Segundo a Ayurveda, mudanças frequentes na nossa rotina diária e melhoria da nossa alimentação farão mais pela nossa saúde a longo prazo do que tomar remédios ou procurar tratamento médico. Não existe nenhum substituto para a nossa maneira correcta de vida. Quanto mais vivemos em desarmonia com a nossa natureza menos podemos esperar em termos de obtenção de saúde, seja por que método for. As nossas acções determinam o nosso nível de consciência assim como o padrão de energia do corpo físico. Segundo os Upanishads “o desejo do homem gera a acção e, como ele age, assim ele se tornará”.

A doença física é frequentemente o resultado da super valorização do corpo físico e do mundo material. Devemos dar ao corpo o cuidado adequado, sem deixar que domine os outros aspectos da nossa vida. Nosso corpo ficará desarranjado devido ao esforço exagerado em quer mantê-lo bem.

A Medicina Ayurveda baseia-se no sistema filosófico hindu Samkhya, onde toda a manifestação material do universo é um fenómeno único da consciência cósmica, manifestada através dos cinco elementos básicos da natureza: Éter, ar, fogo, água e terra, inclusive o corpo humano que além da matéria (Prakriti) também é composto de espírito (Purusha) e este por sua vez de discernimento (budhi), ego (ahsmkara) e mente (manas). É do desequilíbrio de algum dos cinco elementos que se inicia o processo da doença.

Os cinco elementos são:

O éter equivale ao som
O ar equivale ao tacto
O fogo equivale à visão
A água equivale ao paladar
A terra equivale ao olfacto

Estes elementos são como estados da matéria: terra representa o estado sólido, a água, o líquido, o ar o gasoso, o fogo o poder de mudar o estado de qualquer substância e o éter, o elemento que é ao mesmo tempo a fonte de todos os outros e o espaço onde eles existem.

Os cinco elementos básicos aparecem sempre combinados de maneira inseparável na natureza: varia apenas a sua proporção relativa para conferir as diferentes qualidades.

Os Doshas ou “princípios metabólicos” são os princípios que ligam o corpo à mente. Eles têm origem na diferente mistura de pares dos cinco elementos. É através dos elementos e dos Doshas, que o Ayurveda determina a natureza básica do indivíduo e estabelece uma linha de tratamento adequada às suas necessidades reais.

A Medicina Ayurveda possui oito ramos principais.

Medicina interna ou clínica geral
Pediatria
Psiquiatria
Doenças da cabeça e pescoço (otorrinolaringologia, oftalmologia e odontologia).
Cirurgia
Toxicologia
Rejuvenescimento e geriatria
Afrodisíacos (impotência e infertilidade)

A história clínica do paciente inclui além do exame clínico completo, exame da urina, do suor, do escarro e da voz do paciente.

Diversas são as técnicas da cura.
Pela alimentação, a dieta perfeita de acordo com cada um.
Terapia dos sabores
Terapia dos aromas
Massagens com óleos especiais

Além das dietas especiais, o Ayurveda emprega remédios naturais e muitos outros recursos preventivos e curativos. Para equilibrar o Prakriti, a Medicina Ayurveda dispõe de uma infinidade de medicamentos preparados pela combinação de ervas, sais, produtos minerais, bem como extractos, pomadas e óleos vegetais. Não se restringem a aplicações paliativas ou superficiais com o objectivo de eliminar sintomas: são preparados especificamente para cada tipo de paciente e não para a doença que ele apresenta.

Pranayama, o equilíbrio pela respiração.

Técnica que harmoniza os Doshas e regula a distribuição da energia cósmica pelo organismo. Pranayama em sânscrito quer dizer “energia vital”.

Sendo a respiração o ritmo fundamental da vida e o que apoia todos os outros, a respiração pode ser considerada o acto mais criativo do nosso corpo. O lema é viver em sintonia com o nosso corpo mecânico quântico. A rotina mais importante a seguir é o acto de entrar em contacto com o nosso nível quântico pela Meditação Transcendental, que deverá ser praticada durante alguns minutos todos os dias. É esse o modo de elevar a existência comum a um plano superior. Se executarmos alguns processos correctamente, a tendência inerente ao corpo de conservar o equilíbrio cuidará do resto.

Termino com alguns versos Védicos:

É nosso dever como o resto da humanidade sermos perfeitamente saudáveis, porque somos as ondas do oceano da consciência e ao adoecermos, mesmo pouco, rompemos a harmonia cósmica.”

“Mais correcto é ver-nos como uma célula do corpo cósmico, com direito a usufruir os privilégios da condição cósmica, inclusive a saúde perfeita.”

“A inteligência interior do corpo é o maior e supremo génio da natureza. Ela espelha a sabedoria do cosmos.”

“A maior prioridade da vida é a própria vida”

terça-feira, fevereiro 19, 2008


O êxito da crença cristã deve-se ao facto de ter concebido um deus à imagem do homem, caracterizado pelos conceitos que lhe regem a vida, que propiciou a cognição não de uma abstracção mas a projecção de uma realidade sensitiva, personificada pela figura de Jesus Cristo.

Esta transposição de Deus do plano abstracto para o plano material, indubitavelmente, perdida a abstracção, caracteriza-o na perspectiva humana. Ele ser o que queremos que seja, e assim, assumir o papel que queremos que assuma.

Nesta perspectiva, Jesus Cristo é a divindade criada pela crença para a revelação de Deus e nele basear toda a sua teologia.

Se a humanização de deus é galvanizadora na adesão à crença, por seu lado, o misticismo de que os aderentes são imbuídos, exige a mistificação, única forma de reconhecer a divindade.

Para satisfazer esta exigência, a crença dá-lhe características sobre humanas, ao gerá-lo sem a intervenção da natureza e propor-lhe uma morte contra natura. Também a duração da sua vida humanizada, é feita crer pautada por prodígios, que contrariam uma vez mais, as leis da natureza.

Se considerarmos que é a natureza que rege a humanidade, só alguém não regido por ela, poderia ser aceite como deus.

Crer num deus que se revelou e se tornou sensitivo, a sua cognição é muito superior a um deus de noção abstracta, que só a imaginação lhe daria forma.

Assim, a crença para dar credibilidade à sua teologia, transforma o anti natural em dogma e, baseia a doutrinação na convicção do seu regresso, sendo a conversão alicerçada na esperança do retorno.

domingo, fevereiro 10, 2008

Sesimbra (II)

Sesimbra nos princípios do século XX. Ainda não tinha sido construida a marginal e o porto de abrigo

As minhas férias repartiam-se entre a praia, lota da tarde e a pesca.
Os pescadores de Sesimbra praticavam diversos tipos de pesca, com diversos tipos de embarcações, adaptadas a cada uma delas.
A embarcação mais característica de Sesimbra, era e é a aiola, pequeno bote muito elegante, movido a remos ou à vela, que além de servir de apoio aos barcos maiores, era muito usado especialmente na pesca à lula e ao choco.
De maior porte tínhamos as barcas a motor, da pesca ao aparelho, cujo o número de tripulantes variava conforme o seu tamanho e as traineiras, que utilizando as redes de cerco, se dedicavam à pesca de cardumes, como a sardinha, o carapau, a cavala e a sarda.
Ainda foi no meu tempo que assisti, aos últimos exemplares das barcas da armação. A armação era uma arte de pesca fixa, muito antiga. Este tipo de pesca era efectuado por diversas barcas, em conjunto, que não possuíam motor e eram levadas para o lugar onde estavam as redes fixadas, a reboque de uma barca a motor.
Quando a fortuna enchia as redes, e o peixe abundava, carregavam os porões da barca a motor e mais uma ou duas barcas, conforme a quantidade apanhada, que seguiam imediatamente para a lota, as restantes regressavam à vela. Como as redes estavam localizadas relativamente perto da costa, a meio caminho entre Sesimbra e o Cabo Espichel, a nortada da tarde fazia-se sentir e bem, proporcionando-lhes um bom andamento.
Um dos familiares, que vivia em casa do meu tio era pescador numa das armações, era só pedir e lá ia eu à pesca com eles. Não era a pesca que me motivava, pois era no meu entender muito monótona, o alar da rede, sempre acompanhado de típicas canções dos homens do mar, levava muito tempo.
As barcas, dispostas em circulo, bem distanciadas umas das outras, começavam a alar a rede, puxando-a não para bordo, mas deixando-a cair novamente para o mar, o que levava as barcas a aproximarem-se umas das outras, acabando por formarem um circulo pequeno, quando o fundo da rede chegava à superfície, com o peixe aprisionado. Diziam os mais antigos que a armação noutros tempos apanhava atuns, na época da sua migração, mas no meu tempo capturavam somente, carapau, cavala ou sarda, eventualmente sardinha.
Era o regresso, esperançado numa boa pescaria, poder vir à vela. Era o sonho, barco adornado pelo vento e eu sentado no meio dos pescadores a barlavento. O meu tio não achava graça nenhuma.
O outro familiar trabalhava numa traineira, era só formular o desejo e lá embarcava eu para a pesca. Esta era feita de noite ao largo, entre a Costa da Caparica e Cabo Espichel. A costa vista do mar era muito bonita com todas as luzes visíveis. Quando a Lua estava cheia as águas pareciam de prata, quando peixe preso no saco da rede subia à superfície.
Detectado o cardume a rede era lançada à volta dele, formando um circo. A parte superior ficava à superfície, sustentada por bóias de cortiça, a inferior mergulhava direita, pelo peso do lastro de chumbo. Findo o cerco, a rede era fechada na parte inferior submersa, formando um saco onde o peixe ficava aprisionado, após o que o guincho puxava para a superfície a parte inferior desse saco obrigando o peixe a vir à superfície. Com os chalavares recolhia-se o pescado e metia-se porão. Tínhamos de ter cuidado, pois o convés, com o sangue do peixe ficava muito escorregadio.
Normalmente o mestre levava-me na casa do leme para eu poder ver a sonda a indicar a posição dos cardumes, e por vezes, quando estava bem disposto, deixava-me governar o barco. Que sensação para um miúdo de onze anos sentir a roda do leme na mão, e fixar os olhos na agulha para não sair do rumo. Quem pode ser mais feliz?
Pela madrugada, ao amanhecer, já no regresso, comíamos a “bóia”, era um momento estupendo de confraternização entre todos. Eu nunca levava nada para comer, comia da bóia dos outros, só não bebia era o vinho.
Mas de todas as pescas, a minha preferida era a do aparelho. Era nesta pesca que se utilizava o tipo de barco que sempre me mais fascinou. A barca de Sesimbra. De linhas esguias e harmoniosas, com a roda da proa elegantíssima, sem cabina de leme, era governado com uma cana de leme. O ruído característico do motor, um tac, tac, tac, se bem que ruidoso, era uma autêntica melodia para mim. Conhecia o nome da maior parte destas barcas, reconheci-as pelos desenhos pintados nos cascos. Havia-as de diversos tamanhos, mas as mais pequenas, equipadas somente com três pescadores, eram as minhas favoritas.
A pesca ao aparelho é a pesca com anzol. A barca quando chegava ao local escolhido, lançava ao mar uma linha com centenas de anzóis devidamente iscados. Nas barcas maiores chegavam a ser um milhar ou mais. Quando acabava de lançar, após uma pequena pausa, volta ao ponto onde iniciou o lançamento e começava a recolher a linha.
O lançamento desta linha com tão grande quantidade de anzóis, requeria uma técnica muito especial. Para sinalizar o início da aparelho, lançavam uma bóia fundeada, à qual o aparelho ficava preso. Depois com o motor da barca ao relantim, a cerca de um nó de velocidade, começavam a lançar o aparelho. Os anzóis eram levados celhas dispostos de maneira a soltarem-se com a pressão do aparelho e uma pequena ajuda dos dedos dos pescadores. A operação tinha de ser rápida e sem falhas pois o barco está em movimento. Espaçadamente vão sendo colocadas mais bóias de sinalização pelo homem que vai ao leme. Trabalho de artista de circo. Sentado na borda do barco, com um pé no convés e outro na cana do leme, para ficar com as mãos livres, lança as bóias de sinalização ao mesmo tempo que governa o barco.
Os outros dois, avante da cabine da motor, tomam conta das celhas dos anzóis.
A recolha do aparelho era um trabalho árduo, puxar sem parar toda aquela linha, retirar o peixe e colocá-lo no porão, num convés cheio de amarinhado de linhas e anzóis, requeria um enorme esforço físico. Eles pescavam o peixe espada, as corvinas, os gorazes, os pargos, as pescadas, por vezes com diversos quilos cada. Quando participava nesta pesca, a minha ajuda ficava-se por pôr o peixe no porão. Mas estar numa barca tão pequena, no meio da cava das vagas, por vezes bem grandes, já era o suficiente para mim.
A barca onde eu costumava ir pertencia a um pescador conhecido que vivia perto da casa dos meus parentes, só participava na pescaria da tarde, pois se o meu tio soubesse do meu embarque desancava o pobre do homem.
A barca seguia a rota do Cabo Espichel, quando lá chegava, mudava de rumo para Sul e fazia-se mar dentro durante algum tempo, até alcançar o seu lugar de pesca, um fundo rochoso, a que chamavam a Pedra. Como é que estes homens, sem instrumentos de marear, só por intuição, conseguiam encontrar o seu pesqueiro no meio do mar, sem qualquer ponto de referência, pois a costa não era mais do que ténue linha no horizonte? Sempre me intrigou, e quando perguntava como conseguiam encontrar o lugar, a rir respondiam que era pelo cheiro do peixe.
Também vi os últimos vapores de cerco, barcos de pesca movidos por caldeiras a vapor, antecessores das traineiras movidas a diesel, mas estes eram de Setúbal, só vinham descarregar a Sesimbra.

domingo, fevereiro 03, 2008

Sesimbra

Sesimbra nos princípios do seculo XX. Ainda não tinha sido construida a marginal nem o porto de abriogo
Hoje em dia quando me desloco a Sesimbra, não é sem um doloroso confrangimento, que vejo como a “modernidade” ao serviço do laser, descaracterizou impiedosamente, uma das vilas costeiras mais bonitas de Portugal.
Com o confrangimento fazem coro as saudades de um tempo querido, que eu vivi nos anos 50, quando nessa vila passei várias férias grandes escolares, com a duração de dois meses cada.
É esta Sesimbra, que se perdeu no tempo, que a maior parte das pessoas que a visitam hoje não conhecem, que eu quero relembrar, pelas palavras da memória da criança que fui.
O Castelo de Sesimbra
Implantada numa reentrância da orla atlântica do maciço da Arrábida, conheceu o seu primeiro habitante, há cerca de um milhão de anos, o Homo Erectus, quando este chegou proveniente de África. Foi palco da evolução humana durante todo o Paleolítico e Neolítico. No período da Era dos Metais, é visitada pelas civilizações do mundo mediterrânico, Gregos, Fenícios e Cartagineses, com quem estabeleceu contactos.
Também por ela passaram, no período das grandes conquistas, que começaram no século II a.C., os Romanos, as invasões Germânicas, desde os Vândalos aos Visigodos, terminando no século VIII com a invasão dos Árabes vindos do Norte de África, que construíram o primeiro castelo para abrigar o povoado.
Objecto de diversas tentativas de conquista por D. Afonso Henriques, o castelo árabe, éfoi definitivamente conquistado por D. Sancho I, auxiliado pelos cruzados francos, aquém foi doado o povoado. Em 1236, com a doação do concelho de Sesimbra à Ordem de Santiago, a população expande-se para fora das muralhas, criando a povoação da Ribeira de Sesimbra. Mais tarde em 1536, é então criada a vila de Sesimbra, no local que lhe conhecemos hoje, cuja população participou de modo activo na expansão ultramarina. Com a queda dos Duques de Aveiro, últimos representantes da Ordem de Santiago no século XVIII, as terras de Sesimbra, passaram para a tutela real. No século XIX, a vila vai sofrer imensas vicissitudes, desde a conquista napoleónica até à guerra civil de 1834-1836, que levou ao desmantelamento de vários pontos militares costeiros. No final do século XIX e princípio do século XX, assistimos ao renovar da vila de Sesimbra, tornando-se um dos mais importantes e pitorescos portos pesqueiros.
É em meados do século XX que eu faço o meu encontro com Sesimbra, ou melhor com o que dela ainda subsistia das suas tradições como vila piscatória. Durante as minhas férias ficava em casa de uns tios avós maternos, onde moravam também outros familiares, do ramo da tia avó. Todos os homens eram pescadores com a excepção do tio-avô, que era leiloeiro na lota, local onde se vendia o peixe.
Após os meus pais me deixarem em casa dos tios, e regressarem a Lisboa, a primeira coisa que fazia era descalçar os sapatos para só os tornar a calçar dois meses depois. Descalço e em calção de banho de manhã à noite, com liberdade completa de movimentos, era a criança mais feliz que se possa imaginar. O mundo era todo meu, e esse mundo era o mundo do mar e do peixe. Hoje com a escassez que existe é difícil de imaginar a quantidade de peixe que todos os dias era descarregado na praia para vender.
Na praia sim, na que fica à direita do forte se estivermos voltados para o mar e de costas para a vila.
Barcas varadas na rampa por onde peixe saía da paraia, carregado em burros.

O peixe era colocado na praia geometricamente ordenado, fazendo lotes específicos para venda, como no caso do peixe-espada, da albacora, dos safios e das chaputas. Os pargos, gorazes, as corvinas e as pescadas, tinham direito a destaque. Eram colocados em cima de montículos de areia feitos para esse fim.
O carapau, a sardinha, a sarda e a cavala, eram colocados em caixas de madeira próprias e tradicionais, ou vendidos a granel dentro das próprias embarcações. O espadarte, as toninhas e outros peixes de maior porte eram vendidos individualmente.
As baleias nunca soube onde eram vendidas, já não eram da minha época. Não sabiam que em Sesimbra já se caçou às baleias, quando elas viajavam ao longo da costa portuguesa?
Havia, imaginem, duas lotas por dia. A primeira começava por volta das seis da manhã até cerca do meio-dia. A da tarde iniciava-se às seis horas e não tinha hora de terminar, enquanto estivesse a chegar peixe ela não parava, prolongando-se por vezes até às duas da manhã. A lota da manhã era abastecida pela pesca nocturna, a do fim do dia vendia o peixe pescado de tarde. Diariamente passam toneladas e toneladas de peixe fresco pela lota.
Das duas lotas a que mais gostava de participar era na da tarde. Na da manhã limitava-me a ir levar o pequeno-almoço ao meu tio por volta das oito horas, uma leiteira e um pão com manteiga. A lota da tarde, além de mais longa, tinha um encanto muito especial para mim. Depois de cair a noite, por falta de luz artificial, era iluminada com a luz de archotes. É aqui que entrava a minha intervenção. Os archotes eram seguros pelos rapazes da vila, onde eu me incluía, apesar dos protestos do meu tio. Com os pés dentro de água, iluminava-mos a descarga a troco de uma mão cheia de peixe. Eu não precisava do peixe para nada, pois era coisa que não faltava em casa, mas dava-me um prazer enorme ver o meu trabalho recompensado, fazia-me sentir como se fosse um deles.
O peixe à medida que era vendido, era retirado da praia o mais rápido possível, para dar lugar ao que se seguia. Praia cheia, praia vazia durante horas, enquanto durava a descarga do peixe.
O peixe vendido era transportado dentro de caixas, por burros com umas cangalhas especiais para o efeito. Da praia, os burros subiam por uma rampa até o largo da vila sobranceiro ao mar, onde as camionetas dos comerciantes esperavam para serem carregadas.
Ao largo ficavam os barcos de pesca, de que falarei mais adiante, que transbordavam o peixe para pequenas embarcações, as típicas aiolas, que o traziam para terra onde a azáfama era enorme. As aiolas a varar na praia, puxadas pelos homens com as calças arregaçadas, aproveitando o auxílio das ondas, a descarga, o alinhamento do peixe na lota, a venda e por fim a corrida dos burros, que ganhavam ao trajecto.
A música de fundo, protagonizada pelos barítonos pregoeiros, era um imenso e inconfundível coro de vozes e gritos dos participantes desta labuta diária. Tudo isto, sublimemente odorizado, com o cheiro do peixe fresco e da maresia de um mar tão generoso.