segunda-feira, maio 30, 2005

Lembranças XIII

Cinco dias depois da visita médica, fomos informados que nessa noite, chegariam por avião, os feridos da Guiné.
Na manhã seguinte cheguei ao hospital com um misto de curiosidade e de nervoso, pois não fazia a mínima ideia do que me iria esperar. Era a primeira vez que recebia feridos directamente do teatro de operações.
Ao chegar ao hospital, dirigi-me como habitualmente, em primeiro lugar ao gabinete do sargento, onde além dele já se encontrava o Galrinho, que em tom exaltado argumentava com o sargento, pedindo que ele arranjasse alguém para o ajudar, pois sozinho não dava conta do trabalho.
Pensando que se referia aos feridos que tinham acabado de chegar, com o intuito de pôr água na fervura, ofereci-me para o ajudar.
Ajudares? Gritou ele olhando para mim. Deves é estar maluco, tu é que vais precisar de quem te ajude. Fiquei calado por uns instantes, mas comecei a aperceber-me de algo anormal se estava a passar. Mas afinal o que é que se passa? Perguntei. O que é que se passa? , não sabes de nada? gritou ele, e cada vez com a voz mais alta, continuou, mobilizaram quase todos os enfermeiros do serviço, que vão apresentar-se já amanhã, e o nosso sargento, em vez de arranjar substitutos, quer que fiquemos, tu e eu, a tomar conta de mais duas enfermarias.
Fiquei, penso, com cara de parvo incrédulo, pois uma já dava tanto trabalho, como seria possível com duas.
A conversa estava a azedar, o sargento argumentava que não tinha mais ninguém disponível com qualificação para substituir os enfermeiros mobilizados, e nós que nos desenrascássemos, ao que o Galrinho ripostava dizendo para vir ele próprio ajudar em vez de ficar no gabinete.
As coisas estavam a ficar mesmo muito feias. O sargento, vermelho que nem um tomate, levantou-se e gritou-lhe que não admitia faltas de respeito e, ou o Galrinho se calava ou ainda tinha de tomar uma atitude.
O Galrinho não se intimidou, mas num tom de voz menos exaltado, retorquiu. Se o nosso sargento quer participar de mim, participe, mas ponha na participação que eu estava só a pedir ajuda por necessidade e não para faltar-lhe ao respeito.
A tropa é assim mesmo, o sargento quando não sabe o que fazer, ordena que se desenrasquem, e quando não tem argumentos ameaça com a disciplina.
Quando as coisas já estavam a entrar numa fase, quase sem retorno, providencialmente, entrou o Vítor. Bom dia, parece-me que as comadres estão zangadas, disse com o seu ar sempre bem disposto e pronto para a chalaça.
O sargento olhou para ele, e com ar de quem queria comer meio mundo, disse. Também você? Mas o que é isso de me chamar comadre? Que eu saiba ainda sou o chefe do serviço e não admito faltas de respeito, ouviu?
O Vítor, apanhado de surpresa, balbuciou uma desculpa meio entremelada, mas rapidamente recuperou o seu ar habitual e depois de inteirado do que passava, interveio.
Não vale a pena ficarmos zangados, vamos tentar arranjar um solução. Não me importo de ir trabalhar para uma enfermaria, que acha nosso primeiro?
O sargento que delegava nele toda a burocracia do serviço, já se via entulhado de papel até ao pescoço e as suas saídas da parte da tarde comprometidas; olhou de lado para ele e respondeu. Também você está a querer-me tramar? Eu não, só estou atentar ajudar a encontrar uma solução, respondeu o Vítor, esboçando um sorriso.

Fez-se silêncio no gabinete e ficamos todos a olhar para o sargento. O homem não estava nada à espera desta sugestão. Sentou-se, coçou a cara, e depois de um suspiro de desânimo e com uma voz de resignação acabou por decidir.
Está bem, o Vítor continua com o trabalho do gabinete e eu dou-vos uma mãozinha, mas não fico com nenhuma enfermaria a meu cargo, vou circulando por onde for mais necessário, mas só da parte da manhã. Claro, claro todos sabemos e compreendemos que tem os seus afazeres da parte da tarde, completou o Vítor com o seu ar sério que usava para contar anedotas.
O Galrinho já ia a abrir a boca para replicar ao sargento, mas o Vítor agarrou-lhe o braço dizendo. É melhor do que nada, já está resolvido, agora vamos todos à copa tomar um café antes de começarmos a trabalhar.
Depois do café e duma cigarrada foi como nada se tivesse passado. Amigos como sempre. Eu fiquei com as enfermarias 1 e 2 e o Galrinho com as 3 e 4. O sargento só apareceu uma vez e para dar os bons dias, dizendo aos doentes, com um ar sorridente, que nós éramos os melhores enfermeiros do hospital.

A questão continuada publicou um novo texto subordinado ao tema o Mar, desta vez sobre Sesimbra

terça-feira, maio 24, 2005

O paradoxo

A Humanidade na procura da sua própria justificação, torna existente a figura de um criador, como única explicação tangível para a sua existência.
A criação da figura de um criador, como justificação da existência, coloca aquele na sua dependência, como uma necessidade implícita. Ou seja, contempla-se a figura de um criador face à existência, como esta só possível pela actuação daquele, tornando as suas existências interdependentes.
Face a esta dualidade, de necessidade recíproca para existência de ambos, podemos deduzir que se não houvesse a existência, a figura do criador não existia.
Este raciocínio leva-nos a concluir que o criador existe porque a Humanidade existe, havendo, contudo, uma interdependência entre ambos tão infinita, que as diferenças se esbatem, sendo a existência a própria manifestação do criador.
Condicionado pelo mundo dos sentidos e das ideias tangíveis, a Humanidade não consegue identificar-se com o criador, mas tão somente subalternizar-se na criação.
O fundamentalismo da criação, exige-lhe inexoravelmente a identificação do criador, que só pode ser feita na sua subjectividade, o mundo sensível.
Para o tornar perceptível no seu mundo sensitivo, imagina-o à sua imagem. Dá-lhe forma humana, na lógica de que o filho é concebido à imagem do pai, e imbuiu-o de sentimentos, emoções e paixões que são intrínsecas ao homem.
A Humanidade cuja existência dependeu da criação, interpreta esta como um acto de amor do criador, associando a este o bem omnipotente.
Acreditando neste bem omnipotente, põem a sua esperança na dependência dele, esperando como filho, receber o amor do pai.
Mas as esperanças na dependência desse amor infinito, por vezes são goradas, vendo-se confrontado não com o bem mas com o mal, e interroga-se. Como poderia o criador ser a origem do amor e ser simultaneamente a fonte do bem e do mal?
Quando o criado prevarica, é lhe compreensível a punição por parte do criador, mas quando o mal atinge os inocentes, que pensar dele?
Será ele o bem e o mal simultaneamente? Isso era deixar o criado perder a esperança no amor do criador e negar-lhe as suas virtudes sublimes.
Na inadmissibilidade de aceitar o facto, a Humanidade pressupõe a existência do mal em oposição ao bem do criador. Mas cai num paradoxo.
Se para ela tudo o que existe depende de um criador, também o mal para existir teria de ser criado por ele. Como o mal só pode ser gerado pelo próprio mal, o criador teria de ser simultaneamente o bem e o mal.
A religião não se preocupou com este paradoxo, fixou o bem em Deus e criou a figura do Diabo para o mal, só que se o Diabo for um ser incriado a figura do criador deixa de existir.

A questão continuada publicou um novo texto subordinado ao tema o Mar, desta vez sobre Sesimbra.

sexta-feira, maio 20, 2005

O defeito deve ser meu



Se a uns é permitida a paixão, outros há a quem deverá ser permitido a indiferença ou a incompreensão. Refiro-me ao futebol.
Desporto amador, no seu princípio, com reduzido número de praticantes e alguns simpatizantes a assistir às competições, depressa cresceu em número de praticantes e de adeptos, transformando-se no principal desporto da maior parte dos países europeus.
Os adeptos agremiando-se em clubes, com o andar dos tempos, vão substituindo o interesse desportivo, pelo fervor clubista, constituindo este a razão principal de toda a sua aficcion.
As massas de adeptos, que não param de crescer, possuídas por um frenesim de desejo ganhador, colocam a vitória acima de tudo, não se importando com meios usados desde que se alcancem os fins.
Assim as exigências competitivas com vista às desejadas vitórias, não se compadecem com amadorismos, o que vai propiciar o aparecimento do profissionalismo por parte dos atletas, e mais tarde a industrialização do futebol.
Este clima de ansiedade à volta do futebol, passa a fazer parte do quotidiano dos adeptos, ocupando diariamente todas as suas conversas, como se mais nada de importante houvesse para discutir. Facilmente o diálogo pacífico passa à exaltação quando se trata travar razões clubistas. A falta de discernimento em relação à importância do objecto da discussão, leva esta muitas vezes a terminar, senão de forma trágica, pelo menos pouco amigável.
A esta situação não são alheios os governos, que na procura da discrição da sua política, patrocinam e incentivam a cultura futebolística, procurando que esta seja a principal ocupação e preocupação das massas. “Enquanto pensam no futebol, não pensam em outras coisas”.
Os recintos onde futebol é exibido, passam a ser os palcos com um número de espectadores até então nunca visto. Imponentes construções são edificadas, passando a ser os lugares por excelência para os adeptos, darem largas à euforia da vitória ou extravasarem a frustração da derrota, com os comportamentos sobejamente conhecidos.
A notícia passa a depender do futebol e o futebol a depender da notícia. A sobrevivência de inúmeros órgãos de informação depende do futebol, pelo que se torna importante trazer a notícia futebolística diariamente, mesmo que para isso se tenha de recorrer à deturpação do facto ou até à criação do facto não existente. O que é fundamental é criar algo que seja consumido. O futebol por sua vez ganha maior dimensão com a notícia, pois esta no seu próprio interesse procura dar-lhe uma importância quantitativa e qualificativa cada vez maior.
O palco futebolístico, devido à sua dimensão, passa a ser apetecível para os que procuram notoriedade e não só. Aparecem os líderes a encabeçarem uma lista de oportunistas, que por razões diferentes se vão apossando dos clubes. Os primeiros, achando-se acima de qualquer poder, permitem-se para além de contribuírem abertamente para uma enraivecida rivalidade clubista, fazerem críticas insultuosas a membros do governo. Os outros o aproveitamento financeiro que o futebol proporciona.
Mas à importância deste palco também não são alheios os políticos, feitos desportistas na última hora, tentam a sua sorte na tribuna desportiva. Os políticos já nos habituaram com a sua costela de camaleão, mas os governos gastarem o nosso dinheiro a procurarem suporte popular, é tornar o futebol numa instituição nacional.
Como é possível vinte e dois “artistas” a darem pontapés numa bola durante noventa minutos, por muito bem que actuem, terem transformado tanto o mundo? Pessoalmente não consigo compreender e até pratiquei muito desporto. Será a falta de uma cultura mínima, que exigisse mais alguma coisa do que futebol? Será um vazio intelectual? Será uma espécie de circo romano da época moderna? Será o futebol aquilo que permite o uso do pensamento e da acção independentemente da razão? Mas eu vejo tantos doutores falarem apaixonadamente do futebol. Francamente não entendo, o defeito deve ser meu.

sábado, maio 14, 2005

O Canto dos Nibelungos



Quando o fluxo das invasões germânicas abrandou, a recordação dos heróis e dos acontecimentos, perpetuaram-se na tradição. À maneira dos poemas homéricos, desenvolveram a pouco e pouco, grandes epopeias.
A mais célebre ficou sendo o Canto dos Nibelungos, que relata a história da casa real de Borgonha e do seu trágico destino. Historicamente é baseada na destruição, pelos Hunos, do pequeno reino que os Burgúndios tinham estabelecido no Palatinado.
Os Nibelungos constituíam um ou mais grupos de anões na mitologia germânica. Eram também, chamados filhos da névoa. Possuíam um tesouro que tornava amaldiçoado todo aquele que dele se apoderasse. Mais tarde os reis borgonheses passaram a ser chamados de Nibelungos.
Há diversas versões desta história, sendo a mais verosímil, a que é contada nas Eddas islandesas, poema que transcreve a tradição oral da Islândia, escrito entre 1000 e 1300.
Os poemas são literatura de grande tragédia, com descrições dos estados emocionais vividos pelos protagonistas, deuses e heróis. As mulheres têm um papel muito importante, e muitas delas são apresentadas como hábeis guerreiros.
Saga muito longa, O Canto dos Nibelungos, vou apresentar somente um resumo dos principais acontecimentos.

O herói, quase ausente, do poema é Siegfried, um belo príncipe de Niederland, guerreiro audaz que adquiriu uma ofuscante glória nos torneios e nas matanças, e por uma vitória que alcançou sobre o rei Nibelungo, tomando posse do célebre tesouro dos Nibelungos.
Siegfried, apaixonado, obtêm a mão da bela princesa burgúndia Kriemhilde, não menos apaixonada por ele, oferecida pelo irmão desta, o rei Gunther dos Burgúndios, em recompensa da ajuda que Siegfried dera na sua luta contra a «bela rainha Brunehilde de Isenland»
Segundo as crenças germânicas antigas, Brunehil era uma poderosa valquíria, que tanto tinha de bela como violenta. O homem que aspirasse à sua mão tinha de vencê-la num combate de vida ou de morte.
Sem a ajuda de Siegfried, nunca Gunther teria podido vencê-la. Siegfried possuía um manto mágico que o tornava invisível; embrulhando-se nele e, sem que Brunehilde pudesse notar a sua presença, ajudara Gunther na sua luta contra a terrível guerreira.
Em Worms, capital dos Burgúndios, foi celebrado um duplo casamento: o de Gunther e Brunehilde e o de Siegfried com Kriemhilde.
Durante doze anos, todos viveram felizes. Mas, um belo dia, as duas mulheres discutiram sobre qual dos dois maridos era o mais valente. Kriemhilde, fora de si, no auge da discussão, revelou, na sua cólera, o segredo do manto.
Ferida no seu orgulho, Brunehilde jurou a morte de Siegfried e conseguiu persuadir o marido a matar o cunhado, que era o seu melhor amigo.
No decurso de uma caçada, Gunther pôs em prática o plano diabólico, ajudado pelo seu fiel Hagen. Este abateu Siegfried à traição e recebeu de Gunther, como recompensa, a célebre espada Balmung. Depois, o rei dos Burgúndios e seus irmãos apoderam-se do tesouro dos Nibelungos.
Após a morte violenta de seu marido, a doce Kriemhilde, transformou-se por completo, passando a viver somente para vingar a morte Siegfried. Para conseguir os seus fins alia-se a Átila, rei dos Hunos, prometendo casar-se com ele e convence-o a convidar Gunther e a sua nobreza para o seu casamento na Hungria. Deste séquito faz igualmente parte Hagen, cuja atitude é extremamente insolente e provocante. Pavoneia-se com a espada Balmung e vangloria-se abertamente de ter morto Siegfried.
O rei ostrogodo, Teodorico-o-Grande, que tinha perdido o reino, vivia exilado na corte de Atila, também irá desempenhar um papel no Canto dos Nieblungos.
A chegada dos Burgúndios à Hungria é o começo de uma série de querelas sangrentas. Os Burgúndios do séquito são mortos um por um e Gunther e Hagen são feitos prisioneiros.
Levados à presença de Kriemhilde, esta mandou matar o seu próprio irmão e com a espada Balmung nas suas mãos, decapitou Hagen.
Conseguida a vingança, Kriemhild recusa-se a casar com Átila; mas o casamento realiza-se porque a mãe de Kriemhilde consegue que ela beba uma punção mágica.
Mais tarde é Atila quem mata os irmãos de Kriemhilde, a fim de se apoderar do tesouro dos Nibelungos. Kriemhilde está inocente nesta traição e vinga os seus irmãos matando Átila. É verdade que os seus irmãos lhe tinham causado muitas amarguras, mas vingar os irmãos é uma acção sagrada a que não poderia fugir uma filha do rei germânico.

Inspirado no Canto dos Nibelungos Wagner compôs a maior saga dramática que já mais foi posta em música: O Anel dos Nibelungos, divido em quatro dramas, O Ouro do Reno (1854), A Valquíria (1856), Siegfried (1871) e o Crepúsculo dos Deuses (1874). Juntas, esta tetralogia tem quase 20 horas de duração musical.

domingo, maio 08, 2005

Lembranças XII

O nosso reino não foi difícil de conquistar e a conquista consolidou-se com a nossa actuação. Um sentimento de fraternidade unia-nos neste destino impiedoso que a todos atingia. Eles entre ajudavam-se e nós procurávamos ajudar todos. Não era só o tratamento do corpo que contava, mas o auxílio emocional de que muitos deles precisavam, muito mais do qualquer cura física.
Para a maior parte dos que me lêem hoje, a uma distância de cerca de quarenta anos dos factos da minha narração, compreendo que seja muito difícil imaginar que a rapaziada daquela altura, especialmente da província, não era tão desenvolta, tão “evoluída” como a de hoje. Uma grande parte eram rapazes simples, habituados a uma vida simples, no seu mundo da aldeia, o seu estado de espírito era uma mistura de saudade e medo de como iriam ser recebidos com as suas deficiências.
A tudo isto temos de adicionar os traumas provocados pelo medo em situações muito difíceis por que tiveram de passar, bem como os traumas provocados pelas actuações brutais a que a guerra inevitavelmente conduz.
Matar, coisa simples de ver num filme, na prática não o é assim. Para muitos, após o ardor do combate, onde impera o irracional instinto da sobrevivência, relembrar os acontecimentos é um sofrimento de como se foi capaz de fazer o que se fez.
A nossa solidariedade levou-nos a um envolvimento total, ao ponto de muitas vezes, darmos por nós a chorar com eles. Chorar e respeitar o choro dos outros, tornou-se a principal regra emocional da vida no hospital.
O Galrinho, aquele homenzarrão, de um metro e quase noventa, com um vozeirão de meter medo, tornou-se no enfermeiro mais preferido pelos doentes. Ficaram celebres as cartas que escrevia às namoradas dos que estavam impossibilitados fisicamente de o fazer. Nestas cartas, nas quais fazia participar toda a enfermaria, o que a princípio não passava de uma paródia, entremeada de algumas grosserias, acabava sempre por todos emprestarem um pouco de cada um, obtendo como resultado belíssimas cartas de amor. A seu tempo contarei um dos episódios mais bonitos, que ficará para sempre gravado na minha memória.
A rotina na enfermaria, durante os quinze dias que seguiram à minha entrada em funções, decorreram sem incidentes de maior, para além do facto de ter recebido um doente que se encontrava internado na enfermaria prisão.
Era um rapaz alto, muito bem educado, cerimonioso até, que tinha o maxilares inferiores e parte do superior completamente desfeitos. Não podia falar, comunicava por escrito, e recebia os alimentos, que só podiam ser líquidos, por um tubo enfiado na boca. Como não tinha ligaduras, era muito confrangedor ver o estado em que tinha ficado a sua cara.
A sua escrita de comunicação, pela forma, rapidamente conquistou a minha simpatia. Os seus pedidos começavam mais ou menos sempre assim: “Desculpe se não fosse muito incómodo precisava disto ou da quilo” ou “se não estiver a importunar e for oportuno gostaria…”
Claro que o aparecimento deste soldado suscitou o interesse geral, não pelo facto de estar ferido ou da sua aparência horrorosa, mas pela sua transferência da enfermaria prisão para o serviço. Todos queriam saber a sua história.
Os mais atrevidos não perderam muito tempo a perguntar-lhe o que tinha sucedido. Ele ouvia as perguntas e respondia, por escrito, que preferia não falar no caso, mostrando nos olhos uma profunda tristeza. Viemos mais tarde a saber por outro ferido, que tinha pertencido à mesma companhia, toda a sua história.
O pelotão onde ele ia em patrulha, em Angola, tinha caído numa emboscada. Deitados no chão na berma da picada, os nossos soldados estavam a ser atingidos pelo fogo cruzado do inimigo. Já eram numerosos os feridos e os mortos devido à nossa posição desvantajosa em relação aos guerrilheiros, e tudo fazia crer que a chacina iria continuar. Apavorados, os soldados gritavam insistentemente pelo alferes, para que este desse uma ordem que os pudesse tirar dali, mas essa ordem não se fazia ouvir. É no meio deste desespero que ele resolve ir procurar o alferes, indo encontrá-lo, completamente aterrorizado, escondido num buraco, com a cabeça entre as pernas, todo enroscado, a chorar desesperadamente, chamando pela ajuda da mãe.
A outra face da moeda da obediência é a confiança que se deposita no oficial ,um ser superior, capaz de resolver todas as situações, por muito difíceis que sejam, para salvaguardar a vida dos seus homens, como se ele não fosse também, um ser humano com as suas fragilidades.
Ao ver o oficial gritou-lhe: “meu alferes estamos perdidos os gajos matam-nos a todos, o que é havemos de fazer”. O alferes, paralisado pelo medo, não respondeu continuando a chorar. Ele voltou a insistir gritando desesperadamente, “meu alferes, meu alferes faça qualquer coisa pelo amor de Deus ou morremos todos”. O alferes limitou-se a olhar para ele e pediu-lhe “salva-me, salva-me”. Tresloucado pelo desespero do medo, olhou para o oficial e chamando-lhe cobarde deu-lhe um ou dois tiros matando-o imediatamente. Em seguida, possivelmente num momento de lucidez, reconheceu o que tinha feito e tentou suicidar-se, apontando a arma por baixo do queixo . Não morreu mas ficou no estado em que se encontrava.
Este é um dos episódios mais dramáticos da guerra que vitimou duas pessoas, o alferes que morreu por não ser um super-homem e o soldado que ficaria para o resto da vida com a cara extremamente deformada, mesmo após diversas intervenções cirúrgicas. Ambos tinham entre 21 e 22 anos.
Numa das visitas diárias do médico, aquém pertenciam os doentes da minha enfermaria, este informou-me de que os doentes que estivessem em melhores condições seriam transferidos para o piso inferior, pois estava para chegar um novo contingente de feridos vindos da Guiné. A tal “leva” de que tinha falado o enfermeiro com experiência.

Informa-se que a questão continuada reiniciou as publicações, convidando os visitantes a visitá-la e darem a sua opinião sobre o seu novo formato.

quarta-feira, maio 04, 2005

Séptico não, só apreensivo



A comemoração do sexagésimo aniversário do fim da 2ª Guerra Mundial, relembrou-me o palco, os actores e o libreto, desse acto da Grande Ópera da Vida da Humanidade. Ao reler o libreto, para recordar o enredo, veio-me à ideia aquilo a que chamamos a construção da União Europeia.
É facilmente compreensível que uma das formas da Europa fazer frente ao voraz gigante económico americano e ao aparecimento das novas potências asiáticas, fosse o desejo de uma União forte formada pelos Estados europeus.
Contudo, o desejo da formação dessa União, não emergiu da vontade expressada pelos povos europeus, mas tão somente de alguns líderes, sem que para tanto tivesse havido uma consulta popular prévia que legitimasse esse desejo.
Passando o desejo à vontade, resolveram os líderes que o melhor para a Europa seria fazer uma União de interesses, transformando a mentalidade de vizinho antagónico, numa espécie de irmandade de inter ajuda, procurando internamente na Europa, o nivelamento das desigualdades sociais entre os diversos membros.
Mas da vontade à prática, vai uma vivência de quase 1.300 anos de disputas mesquinhas, invejas, rivalidades, conquistas, massacres e guerras como a que estamos a comemorar o seu final; em fim, um estado de guerra quase permanente entre os povos europeus, fazendo lembrar a Antiga Grécia, onde o individualismo das Polis se sobrepunha ao interesse da Hélade.
Numa Europa tão rica como egoísta culturalmente falando, com cada povo cioso da sua superioridade cultural em relação aos outros membros, querendo que uns sejam filhos e os outros bastardos, e onde os mais numerosos ou mais ricos se julguem com mais direitos, não estando por isso interessados num verdadeiro nivelamento social, mas sim no aproveitamento que os mais fortes podem fazer dos mais fracos, que União será possível?
Como podem ser esquecidas as rivalidades centenárias, as divergências religiosas, a sub valorização da língua, a sujeição a decisões "estrangeiras", a livre circulação e concorrência no trabalho? Só os que mais podem receber, estarão de acordo, enquanto os que têm de despender manifestarão o seu descontentamento.
É neste antagonismo que se está a alicerçar a União Europeia, onde os europeus há 60 anos, só ainda há 60 anos se destruíam mutuamente. Estará o ódio esquecido ou adormecido?
Sabemos que a necessidade faz a união e a união faz a força, mas quando vimos a rendição de alguns líderes ao poder americano, no caso do Iraque, é caso para perguntar onde está a União que nos querem vender? ou a União funciona conforme os interesses? Se são os próprios líderes, que apregoam a necessidade da União, a dar o exemplo da desunião, que esperar do povo, especialmente em tempo de crise económica como a que atravessamos. Talvez a resposta venha de França.