Lembranças IX
O edifício do serviço de cirurgia tinha dois andares, o rés do chão onde ficavam as enfermarias dos doentes que aguardavam intervenções cirúrgicas ou estavam em pós operatório. Em ambos os casos, os doentes não eram feridos de guerra, mas tão só doentes de qualquer doença, apendicite, hérnias, quistos etc. e sinistrados ligeiros dos exercícios de treino nos quartéis. Também neste piso ficava o serviço de urgência, que normalmente é designado por banco. Esta do banco está bem adjectivada, se pensarmos no tempo de espera, sentados no banco, que passamos nas urgências dos hospitais para sermos atendidos.
No hospital militar não havia banco, todos os sinistrados eram prontamente atendidos, e olhem que eram muitos. Estávamos em guerra e a preparação militar procurava recrear situações o mais reais possíveis, inclusive o uso de munições verdadeiras. Todos os dias recebíamos sinistrados com membros fracturados, e por vezes alguns com uma ou outra bala extraviada alojada. Tínhamos mesmo muito trabalho.
Enquanto instruendos do curso de enfermagem, não nos era autorizado circular noutro local que não fosse no rés do chão. Todo o serviço prático era feito nas enfermarias e na sala de tratamentos do serviço. Mas a curiosidade é grande e começamos a conjecturar o que estaria nas enfermarias do piso superior. Havia unanimidade na resposta, eram os feridos mais graves vindos da guerra.
Às nossas perguntas, o sargento monitor, respondia que tínhamos tempo de ver o que por lá se passava, por agora que ficassemos por onde estávamos para não atrapalhar.
O grupo de alunos de enfermagem, era muito mais pequeno que o pelotão de Mafra o propiciou um melhor conhecimentos uns dos outros, e dar início a amizades. Fiz dois amigos, o Galrinho e o Victor, que foram meus camaradas no hospital durante todo o tempo até passarmos à disponibilidade juntos.
Um dia também o curso chegou ao fim, após ter aprendido a dar injecções na perfeição, fazer suturas, pensos, curar feridas, fazer gessos, medir a tensão arterial, um sem fim de coisas, que por muitas que fossem, eram muito poucas comparado com o que viríamos a aprender na prática no futuro exercício da especialidade.
Eu e os meus amigos ficámos nos três primeiros lugares do curso, o que nos deu colocação imediata no serviço de cirurgia (a especialidade cimeira do hospital). Postas as divisas de cabo miliciano, fomo-nos apresentar ao sargento chefe das enfermarias do serviço de cirurgia, que ficava no primeiro andar, o tal onde não queriam que nós fossemos espreitar, para um suposto estágio pós formação.
O chefe das enfermarias era um primeiro sargento do quadro, lateiro como se dizia na gíria, mas ao contrário do que era normal com estes sargentos, era uma óptima pessoa, sempre bem disposto, e pronto a ajudar no que quer que fosse. Só impunha uma condição: ausentar-se sempre que precisava para exercer a sua profissão, não no exército mas na vida civil. Entre outras coisas era massagista no Sporting. Mas fora o pecado, o gajo era mesmo porreiro, o que se reflectiu e muito na nossa vida hospitalar. Não me lembro do seu nome, mas vou passar a trata-lo por António.
O nosso primeiro dá licença?, pedimos nós à entrada do seu gabinete, que era simultaneamente o gabinete médico, para entrarmos. Entrem, respondeu ele olhando para nós sentado atrás de uma secretária, e com um sorriso estendeu a mão e cumprimentou-nos. Então foram vocês que me saíram na rifa? É verdade respondeu um de nós. Vocês eram enfermeiros na vida civil antes entrarem para a tropa? Voltou a perguntar. Não, tirámos o curso de enfermagem aqui no hospital e vimos estagiar.
Após uma breve pausa, apoiou os cotovelos na secretária, uniu as mãos e pousando o queixo sobre elas disse. Estou f…., tenho seis enfermarias e só tenho quatro enfermeiros com experiência, os outros foram todos mobilizados para o Ultramar na semana passada. Não sei o que o Horta quer que faça (o Horta era o coronel médico director do hospital). O pomba branca (era a alcunha do sargento ajudante, enfermeiro mor do hospital) não liga nenhuma, só se interessa pela limpeza, o resto a gente que se desenrasque. Isto não um serviço de medicina, aqui temos muito mais trabalho.
Findas as lamentações nova pausa, esta mais prolongada. Endireitou as costas na cadeira, cruzou os braços sobre o peito e com a voz num tom mais sério interrompeu o silêncio. Têm de se desenrascar, não há estágio nenhum, dois de vocês vão tomar conta das duas enfermarias que não têm enfermeiro, até vão aprender mais depressa. O terceiro fica aqui comigo a tratar da m… da papelada.
Mas nosso primeiro, não temos prática para tratar dos doentes, argumentou o Galrinho. Não faz mal eu estou aqui para vos ajudar, contrapôs.
Nova pausa. Os olhos dele agora sorriam maliciosamente, e nós entendemos que a escolha da distribuição era nossa. E decidimos, uma enfermaria para mim, outra para o Galrinho e a escrita para o Victor, que tinha o estômago mais fraco para digerir tal petisco. A escrita do serviço, por seu lado, também não era coisa fácil. Ler os boletins médicos, com aquela letra horrível que mais parece linguagem em cifra, para ver as prescrições medicamentosas e fazer as respectivas requisições, tratar das altas, transferências, exames médicos etc.
O sargento visivelmente satisfeito, levantou-se, dirigiu-se para a porta, e com um gesto de convite a indicar a saída do gabinete, disse: o meu nome é António e agora vou mostrar as dependências do hotel.
No hospital militar não havia banco, todos os sinistrados eram prontamente atendidos, e olhem que eram muitos. Estávamos em guerra e a preparação militar procurava recrear situações o mais reais possíveis, inclusive o uso de munições verdadeiras. Todos os dias recebíamos sinistrados com membros fracturados, e por vezes alguns com uma ou outra bala extraviada alojada. Tínhamos mesmo muito trabalho.
Enquanto instruendos do curso de enfermagem, não nos era autorizado circular noutro local que não fosse no rés do chão. Todo o serviço prático era feito nas enfermarias e na sala de tratamentos do serviço. Mas a curiosidade é grande e começamos a conjecturar o que estaria nas enfermarias do piso superior. Havia unanimidade na resposta, eram os feridos mais graves vindos da guerra.
Às nossas perguntas, o sargento monitor, respondia que tínhamos tempo de ver o que por lá se passava, por agora que ficassemos por onde estávamos para não atrapalhar.
O grupo de alunos de enfermagem, era muito mais pequeno que o pelotão de Mafra o propiciou um melhor conhecimentos uns dos outros, e dar início a amizades. Fiz dois amigos, o Galrinho e o Victor, que foram meus camaradas no hospital durante todo o tempo até passarmos à disponibilidade juntos.
Um dia também o curso chegou ao fim, após ter aprendido a dar injecções na perfeição, fazer suturas, pensos, curar feridas, fazer gessos, medir a tensão arterial, um sem fim de coisas, que por muitas que fossem, eram muito poucas comparado com o que viríamos a aprender na prática no futuro exercício da especialidade.
Eu e os meus amigos ficámos nos três primeiros lugares do curso, o que nos deu colocação imediata no serviço de cirurgia (a especialidade cimeira do hospital). Postas as divisas de cabo miliciano, fomo-nos apresentar ao sargento chefe das enfermarias do serviço de cirurgia, que ficava no primeiro andar, o tal onde não queriam que nós fossemos espreitar, para um suposto estágio pós formação.
O chefe das enfermarias era um primeiro sargento do quadro, lateiro como se dizia na gíria, mas ao contrário do que era normal com estes sargentos, era uma óptima pessoa, sempre bem disposto, e pronto a ajudar no que quer que fosse. Só impunha uma condição: ausentar-se sempre que precisava para exercer a sua profissão, não no exército mas na vida civil. Entre outras coisas era massagista no Sporting. Mas fora o pecado, o gajo era mesmo porreiro, o que se reflectiu e muito na nossa vida hospitalar. Não me lembro do seu nome, mas vou passar a trata-lo por António.
O nosso primeiro dá licença?, pedimos nós à entrada do seu gabinete, que era simultaneamente o gabinete médico, para entrarmos. Entrem, respondeu ele olhando para nós sentado atrás de uma secretária, e com um sorriso estendeu a mão e cumprimentou-nos. Então foram vocês que me saíram na rifa? É verdade respondeu um de nós. Vocês eram enfermeiros na vida civil antes entrarem para a tropa? Voltou a perguntar. Não, tirámos o curso de enfermagem aqui no hospital e vimos estagiar.
Após uma breve pausa, apoiou os cotovelos na secretária, uniu as mãos e pousando o queixo sobre elas disse. Estou f…., tenho seis enfermarias e só tenho quatro enfermeiros com experiência, os outros foram todos mobilizados para o Ultramar na semana passada. Não sei o que o Horta quer que faça (o Horta era o coronel médico director do hospital). O pomba branca (era a alcunha do sargento ajudante, enfermeiro mor do hospital) não liga nenhuma, só se interessa pela limpeza, o resto a gente que se desenrasque. Isto não um serviço de medicina, aqui temos muito mais trabalho.
Findas as lamentações nova pausa, esta mais prolongada. Endireitou as costas na cadeira, cruzou os braços sobre o peito e com a voz num tom mais sério interrompeu o silêncio. Têm de se desenrascar, não há estágio nenhum, dois de vocês vão tomar conta das duas enfermarias que não têm enfermeiro, até vão aprender mais depressa. O terceiro fica aqui comigo a tratar da m… da papelada.
Mas nosso primeiro, não temos prática para tratar dos doentes, argumentou o Galrinho. Não faz mal eu estou aqui para vos ajudar, contrapôs.
Nova pausa. Os olhos dele agora sorriam maliciosamente, e nós entendemos que a escolha da distribuição era nossa. E decidimos, uma enfermaria para mim, outra para o Galrinho e a escrita para o Victor, que tinha o estômago mais fraco para digerir tal petisco. A escrita do serviço, por seu lado, também não era coisa fácil. Ler os boletins médicos, com aquela letra horrível que mais parece linguagem em cifra, para ver as prescrições medicamentosas e fazer as respectivas requisições, tratar das altas, transferências, exames médicos etc.
O sargento visivelmente satisfeito, levantou-se, dirigiu-se para a porta, e com um gesto de convite a indicar a saída do gabinete, disse: o meu nome é António e agora vou mostrar as dependências do hotel.