domingo, novembro 25, 2007

Falar de pobreza V

Falar da pobreza, parece estar na ordem do dia, ainda que poucas pessoas procurem conhecer afundo o fenómeno. A pobreza não é uma doença súbita, é uma patologia lenta que nos vai consumindo sem darmos por isso e, um dia, podemos acordamos doentes. Talvez pareça excessivo, mas vou procurar fazer uma análise da evolução portuguesa ao longo dos últimos 100 anos. Tenho 66 anos de idade, o que me coloca na qualidade de observador de, pelo menos, meio século. Convido todos os que me visitam a participarem, não como um debate, mas uma tribuna aberta a todas as opiniões. Vale a pena perder um bocadinho do nosso tempo a pensar no assunto, pois o que se mostra no horizonte, não é nenhum mar de rosas.
Para a elaboração dos meus textos, vou-me socorrer da obra Portugal Século XX de Joaquim Vieira de onde recolherei textos, dados estatísticos e fotografias.







Volta a viver-se nas furnas de Monsanto (Lisboa). Família aquem foi estruida a casa por uma intempérie (1947)

Década de 1940 a 1950

Os anos da guerra

Estatística referente a 1940
População 7.755.423 (homens 3.734.348 48,1% mulheres 4.021.074 51,9%) (menores de 20 anos 3.216.700 41,5% maiores de 60 anos 760.620 9,8%)
Mortalidade infantil (por mil partos) 126,09
Esperança média de vida homens 47,7 anos
Esperança média de vida mulheres 51,8 anos
População de Lisboa 694.389
População do Porto 258.548
Analfabetos 49%
Emigrantes oficiais (por mil habitantes) 1,7
Eleitores inscritos 813.558
Escolas primárias 7.768
Estudantes do ensino primário 587.747
Estudantes do ensino secundário 32.322
Estudantes universitários 8.692
Automóveis em circulação 39.146


«A guerra não podia deixar de ter tido, como efectivamente teve, um terrível efeito desorientador na incipiente organização corporativa»
Marcelo Caetano


Se no primeiro decénio da ditadura (1927 – 1936) cada português consumia uma média diária de 2524 calorias, no segundo (1937 -1947) o valor desceu para 2403, quebra amortecida pelo recurso ao vinho (195 calorias diárias no segundo período contra 154 no primeiro).

Apesar das limitações da guerra aos abastecimentos, há bens alimentares, mas não ao alcance de todos, gera-se riqueza, mas não distribuída pela maioria. Os géneros obtêm-se no mercado negro, por bom dinheiro ou influência e, as receitas dos negócios de guerra entram nos cofres do Estado, nas contas das empresas ou nos bolsos dos comerciantes.

Em 1942 o panorama é crítico, com as importações muito reduzidas. A fome atinge as famílias operárias das grandes concentrações industriais e sobretudo os assalariados rurais.

Quem não pode recorrer ao mercado negro, tem de enfrentar gigantescas bichas para a obtenção das senhas de racionamento. A lista dos produtos racionados é enorme: o açúcar, o arroz, o bacalhau, as massas, o sabão, a manteiga, o café, o cacau, o azeite, os óleos alimentares, o grão, os cereais e as farinhas, assim como o pão 8reduzido o branco para 180 gramas por dia e por pessoa ou, em alternativa, o escuro a 290 gramas). Também as batatas serão condicionadas a meio quilo por semana e por pessoa. Carne nem cheiro para pobre, aves só para ricos.

Os preços sobem e Salazar congela os salários, impedindo que acompanhem a inflação.
«seria um perigo, um erro, um crime contra o equilíbrio económico, a solidez financeira e a paz social abandonar a disciplina a que nos temos providencialmente sujeito» Salazar

No início da década o salário agrícola vale em média um quinto de há vinte anos. O Instituto Nacional de Estatística constata que toda a refeição se baseia em broa, «com umas três ou quatro sardinhas salgadas, mais ou menos batatas, duas tigelas de caldo com legumes secos e hortaliça.» O inquérito feito numa povoação alentejana, previne que «a classe dos jornaleiros temporários encontra-se em estado de subalimentação, com o regime insuficiente, tanto em quantidade como em qualidade». «Se o trabalho falta e o merceeiro não fia, apenas um dia ou outro mitigará a fome com um prato dado por caridade», conclui o inquérito.

A repressão não consegue impedir alguns aumentos salariais que rompem a política de contenção, acelerando a espiral inflacionária que acaba sempre por prejudicar quem depende do rendimento do trabalho (entre 1942 2 1946, os salários descerão em média um décimo do seu valor real em 1941).

A penúria continua no imediato pós-guerra, mantendo-se o racionamento e o Ministério do Interior lança o apelo do Socorro de Inverno, sob o lema «Todos os que podem a favor de todos os que precisam». O Estado mendiga, mas o alheamento é confrangedoramente generalizado.

Mas nem tudo é miséria, pelo menos para alguns. É a vaga dos novos-ricos desfazendo fortunas ao ritmo que as ganham. É a época do “ouro negro” o volfrâmio, que leva milhares de famílias camponesas, aldeias inteiras, a trocar a enxada pela picareta, o sol pelo buraco, onde como toupeiras, tentam superar a sua miséria. Também não têm mãos a medir os industriais que fornecem sobretudo os alemães, preferidos por pagarem com divisas ou ouro judeu e não a crédito como acontecia com os aliados.

A Mitra de Lisboa é a instituição onde são internadas as crianças pedintes de Lisboa, mata-lhes a fome, mas não elimina as causas da miséria. A miséria, sobretudo nas cidades, deve ter atingido o seu zénite nesta década. Mulheres, crianças e cães disputam a comida nas lixeiras, ou vasculha restos de carvão dos caminhos-de-ferro, para trocar por comida. A sociedade portuguesa mais desfavorecida vive momentos de grande desespero.


Crianças formadas para almoçar na Mitra de Lisboa, que mais parece um campo de concentração nazi.


Mas futilidade parece ser o nosso apanágio. Com a guerra são milhares os fugitivos que passam por Lisboa e com eles novas maneiras de estar na vida. Os homens passam o dia a desfilar pelos cafés de Lisboa, para verem as pernas das fugitivas, as mulheres a invejarem as meias de seda. As estrangeiras, desinibidas mostram-se em malho na praia, fumam, cruzam as pernas e mostram decotes generosos. Eles não usam chapéu e mostram o peito nu na praia. Enquanto uns choram a miséria, para outros, o swing passa a ser a grande moda nos bailes. Imitar passou a ser o paradigma desta Lisboa mesquinha.

Só em 1947 foi levantado o racionamento, quando o então o Ministro da Economia Daniel Barbosa, utilisou o ouro e as divisas acumuladas durante a guerra, para uma compra maciça de géneros alimentares.

domingo, novembro 18, 2007

Falar de pobreza IV

Falar da pobreza, parece estar na ordem do dia, ainda que poucas pessoas procurem conhecer afundo o fenómeno. A pobreza não é uma doença súbita, é uma patologia lenta que nos vai consumindo sem darmos por isso e, um dia, podemos acordamos doentes. Talvez pareça excessivo, mas vou procurar fazer uma análise da evolução portuguesa ao longo dos últimos 100 anos. Tenho 66 anos de idade, o que me coloca na qualidade de observador de, pelo menos, meio século. Convido todos os que me visitam a participarem, não como um debate, mas uma tribuna aberta a todas as opiniões. Vale a pena perder um bocadinho do nosso tempo a pensar no assunto, pois o que se mostra no horizonte, não é nenhum mar de rosas.
Para a elaboração dos meus textos, vou-me socorrer da obra Portugal Século XX de Joaquim Vieira de onde recolherei textos, dados estatísticos e fotografias.


Nem sempre a miséria é material

Década de 1930 a 1940

O Estado Novo

Estatística referente a 1930
População 6.825.883 (homens 3.255.876 47,7% mulheres 3.570.007 52,3%) menores de 20 anos 2.860.881 41,9% maiores de 60 anos 663.030 9,7%)
Mortalidade infantil (por mil partos) 143
Esperança média de vida homens 44,8 anos
Esperança média de vida mulheres 49,2 anos
População de Lisboa 591.939
População do Porto 229.794
Analfabetos 61,9%
Emigrantes oficiais (por mil habitantes) 3,4
Eleitores inscritos 574.260
Escolas primárias 7.729
Estudantes do ensino primário 367.330
Estudantes do ensino secundário 17.829
Estudantes universitários 6.800
Automóveis em circulação 25.056

Mais difícil que conquistar o poder é mantê-lo. As questões de regime estão todas em aberto. Procura-se alguém que as consiga resolver.

O que faremos nós com esta ditadura? É a questão que os oficiais conservadores colocam após conquistar o poder. Mais difícil é decidir: Que Constituição? Regresso à monarquia? Ditadura a prazo? Os militares mantêm o poder ou passam-no aos civis? Como evitar a instabilidade anterior, contra a qual se afirmou ter sido feita a revolução? Mais urgente ainda, como pagar a dívida ao estrangeiro e anular a bancarrota nacional?

Em 1928, com Carmona em Belém é convidado para a pasta das finanças o Dr. Oliveira Salazar. O seu princípio fundamental é “produzir e poupar”.
«Entre as duas opções, uma de produção-consumo, ligada ao interesse pelos bens materiais e acarretando miséria e corrupção material e moral, e outra de produção sem consumo, uma «economia familiar» que significa mais que qualquer indústria, por poderosa que seja, por mãos poderosa que seja, garanto que é nesta que reside a salvação nacional» Oliveira Salazar

É Salazar quem passa a marcar o ritmo do regime declarando a fase da «ditadura financeira» após a «ditadura militar» finalizando com a «ditadura nacional» com o slogan «Tudo pela Nação, nada contra a Nação».


A Grande Ilusão

«É necessário que, de uma vez para sempre, Portugal deixe de dar ao mundo a impressão de ser um grande manicómio.»
Almirante Luís Magalhães Correia, ministro da marinha, Abril de 1931

Num mundo à beira da catástrofe, Portugal vive risonho os anos trinta, metido na ordem por uma ditadura e contente com isso. É o Portugal agarrado à «ilusão da sua felicidade», observa Antoine de Saint-Exupéry, de passagem por Lisboa.

O responsável pela ilusão chama-se Oliveira Salazar. De “mago das finanças” ascende a primeiro-ministro e fundador ideológico de um novo regime: o Estado Novo.

Com o fundamento de um Estado pobre mas honrado e sossegado, nem que para isso seja preciso usar a força, assenta a sua política na «economia familiar» na procura de uma estabilidade que contrasta com a agitação além-fronteiras.

Se a adesão das classes médias, antigas apoiantes da República, acabam por estabelecer a diferença, fazendo pender o pêndulo para o lado do regime, já para as classes operárias ou rurais, que não vislumbravam qualquer melhoria da sua condição de pobre, o Estado Novo representa uma grande desilusão.

Elegendo a agricultura como o principal motor da produção nacional, dá início á campanha de produção de trigo, especialmente no Alentejo, onde a condição do trabalhador rural, piora consideravelmente ao ver-se reduzido ao trabalho sazonal das sementeiras e das ceifas. São enormes ranchos de gentes que se deslocam para trabalhar nas grandes propriedades, por tempo limitado, em deploráveis condições de conforto, por salários de miséria. No Norte, a agricultura de subsistência que continua, em nada contribui para o desenvolvimento da economia e, juntamente com as regiões mais do interior, a subsistência ronda constantemente a fome.

A industria encorajada pelo novo proteccionismo que a poupa da concorrência, conserva os antigos vícios. Em vez de reinvestir e produzir riqueza, canaliza os lucros para prédios de rendimento, propriedades e fausto social. Não evolui, continuando a utilizar os mesmos métodos artesanais, alheia à modernização, procura a sua rentabilidade na utilização de mão-de-obra barata.

O único investimento em novas indústrias é o capital estrangeiro. Especialmente o britânico.

O sector dos serviços é quase inexistente.

As crianças começam muito novas a trabalhar, com ordenados proporcionais ao seu tamanho e idade. A escolaridade obrigatória é ignorada para que as crianças ingressem no mundo trabalho.

No mundo rural, onde trabalha cerca de metade da população, o analfabetismo por um lado e a sujeição milenar à Igreja, leva a uma resignação consentida, de que a virtude reside na família, por muito pobre que seja. No fabril, a consciência da sua miséria começa a ser evidenciada pelos primeiros movimentos operários.

Devido à crise que grassa no estrangeira face à tragédia que se aproxima, a emigração é suspensa e, famílias inteiras, não têm outra perspectiva de vida que não seja mendigar de aldeia em aldeia.

Mas entre a classe média, que vive com alguns sinais de riqueza, e a pobreza, uma nova classe caricata começa, cada vez mais a desenvolver-se. Os citadinos que, embora sem rendimentos que o justifique, por vezes até muito baixos, levam uma vida de ilusão, dando um ar de prosperidade, em especial a Lisboa, que não correspondia à realidade.

Para isso concorre o Estado, fomentando o cinema, o teatro, os desfiles, os bailes, a rádio, tudo sob a batuta ideológica do novo governo. Tudo concorre para o ideal: “Pobrezinho mas honrado”

A cidade assiste a um incremento do comércio nunca visto, o número de lojas aumenta consideravelmente. O caixeiro e caixeira, são classes de promoção social, contudo só em 1931 é proibido o mugir leite na rua.

A miséria urbana e rural, embora um pouco mais disfarçada, continua a ser um flagelo para a maior parte dos portugueses.

O país conhece a maior pujança demográfica, mas não fruto da fertilidade, mas da redução da mortalidade infantil, para que concorreram as medidas tomadas na década anterior. Mas a esperança de vida continua muito baixa em relação ao resto da Europa. À frente das doenças mortais estão os resultados das deficiências alimentares, a tuberculose, que só por si vitima mais de dez mil doentes por ano.

Em 1936 é criada a Legião Português, uma milícia cujo objectivo é combater o comunismo.

domingo, novembro 11, 2007


Falar de pobreza III

Falar da pobreza, parece estar na ordem do dia, ainda que poucas pessoas procurem conhecer afundo o fenómeno. A pobreza não é uma doença súbita, é uma patologia lenta que nos vai consumindo sem darmos por isso e, um dia, podemos acordamos doentes. Talvez pareça excessivo, mas vou procurar fazer uma análise da evolução portuguesa ao longo dos últimos 100 anos. Tenho 66 anos de idade, o que me coloca na qualidade de observador de, pelo menos, meio século. Convido todos os que me visitam a participarem, não como um debate, mas uma tribuna aberta a todas as opiniões. Vale a pena perder um bocadinho do nosso tempo a pensar no assunto, pois o que se mostra no horizonte, não é nenhum mar de rosas.
Para a elaboração dos meus textos, vou-me socorrer da obra Portugal Século XX de Joaquim Vieira de onde recolherei textos, dados estatísticos e fotografias.





Pobres a comerem na "Cozinha Económica" a sopa dos pobres

Década de 1920 a 1930

Os últimos anos da atribulação republicana

Estatística referente a 1920

População 6.032.991 (homens 2.855.818 47,5% mulheres 3.177.173 52,7%) (menores de 20 anos 2.594.925 43,0% maiores de 60 anos 592.375 9,8%)
Mortalidade infantil (por mil partos) 284
Esperança média de vida homens 35,8 anos
Esperança média de vida mulheres 40,1 anos
População de Lisboa 486,372
População do Porto 203,091
Analfabetos 4.277.341
Emigrantes oficiais 64.651
Eleitores inscritos 686.536
Escolas primárias 6.868
Estudantes do ensino primário 289.605
Estudantes do ensino secundário 13.748
Estudantes universitários 3.464
Automóveis em circulação 3.000


Até o Zé Povinho (…) já bebe champanhe, transformando as nossas hortas em cabarés de Montmartre
Urbano Rodrigues

A classe média dos anos vinte, é de uma futilidade confrangedora. Lisboa passa a imitar Paris, Berlim ou Nova Iorque, acompanha-se com espumante a jazz-band, o fox-trot e o charleston, usa-se o cabelo na razão inversa a extensão dos colares, moldam-se as roupas ao corpo e solta-se o espírito e a leviandade. Explode o consumo, associado a uma esfusiante alegria de viver.

Não interessa que o país esteja endividado ou que a moeda tenha caído num abismo cambial, o que é preciso é gastar, gastar, mesmo aquilo que se não tem e, para isso lá está a casa de “prego”. Esta classe subserviente dinamiza a economia num falso sobreposto de prosperidade, onde uma minoria finge ser aquilo que não é e, uma larga maioria é obrigada a ser o que é. Miserável.

Se emissões fiduciárias sem a indispensável cobertura em ouro, fazem chover rios de dinheiro sem o correspondente aumento da riqueza e proporcionam uma inflação galopante que só agrava mais a vida de quem é pobre, já por seu lado o abutre capitalista, tira o melhor partido da situação. Entre 1920 e 1926 aparecem 18 novos bancos. Nacinal Ultramarino, Espírito Santo, Burnay, Sottomayor e o Borges & Irmão entre outros. A especulação está na ordem do dia e, é neste ambiente que aparece maior burlão do século, Alves dos Reis. O Estado acumula uma dívida astronómica.

A este propósito lamenta Brandão. “Conheço, dez vinte casos cuja fortuna assenta numa infâmia. Conheço mil pobres com uma vida digna de quem ninguém faz caso. O rico explora o desgraçado, já não há nenhum homem que não se sinta afrontado e que no íntimo não deseje que isto desabe… Só falta um passo.

A bagunça republicana, sem encontrar uma fórmula estável de governação, prossegue ao longo dos anos vinte à média de um governo de cem em cem dias.
Quando uma nação já não consegue sair do beco político, há sempre um recurso: a sua força armada. Com o seu poder de compra reduzido para metade tende a avaliar a situação da mesma forma que vê a sua caserna e, assim, aconteceu o 28 de Maio, e Portugal teve por presidente um general, Carmona.

Falar dos anos 20 em Portugal, apenas pelos que aderem à ociosidade do tempo é como avaliar a solidez de um prédio pela fachada. Para lá dos hábitos festivos que constroem uma imagem singular da época, há uma multidão para a qual a vida pouco se altera. É uma imensa maioria que não frequenta os clubes nocturnos, não vê espectáculos, não veste à moda nem consome espumante.
Para esses, embora suportando sobre os ombros o tradicional fardo do atraso português, as transformações dos anos 20 pouco significam. A excepção é constituída por alguns programas de habitação social em Lisboa, mas a sua lentidão é tão grande, que no fim da década ainda não estavam prontos. O resto da construção civil, privada e próspera, dominada por empreiteiros pouco escrupulosos, onde o arquitecto dá lugar ao mestre de obras, vai desfigurando a cidade e, a má qualidade das construções levam a diversos desmoronamentos fazendo dezenas de vítimas mortais.
Sendo a capital o destino do fluxo migratório, daqueles que pouco mais resta do partir e, que não se querem aventurar no estrangeiro, calculados em mais de 100 mil, o alargamento dos bairros da lata na periferia, torna-se inevitável, com índices ofensivos de miséria. Crianças e idosos mendigam e vivem na rua. A pequena criminalidade também aumenta. São montadas “Cozinhas Económicas” refeitórios públicos, para matar a fome com um prato de sopa, aos que nada têm para comer. A indigência persiste, sem que nada seja feito para que regrida, só ocultá-la.

As autoridades estão mais empenhadas em disfarçar a miséria do que a combatê-la. Proíbem os pés descalços nas ruas, mas são aos milhares os que não têm dinheiro para comprara calçado. Para ajudar a criar a ilusão de um cosmopolitismo, proíbem cuspir nos eléctricos e na Baixa lisboeta os estendais voltados para a rua.

O fluxo migratório em direcção a Lisboa é o retrato da estagnação da província, onde o latifúndio explora desumanamente o trabalhador e o minifúndio ao norte passa fome.

As indústrias persistem na sua cultura artesanal, onde o patrão tem um papel paternalista. Começam a formar-se os primeiros pólos industriais, onde o trabalhador analfabeto, pouco mais é que um escravo. No mar, o pescador sem portos de abrigo, joga diariamente à cabra cega com a morte. Todos os anos a morte revê-se nos trajos pretos das viúvas.

As doenças são combatidas com medidas tão eficazes, como uma aspirina perante um cancro. Só a mortalidade infantil merece um pouco mais de atenção. Aparecem as primeiras maternidades, lactários e cresces.

sexta-feira, novembro 02, 2007

Falar de pobreza II

Falar da pobreza, parece estar na ordem do dia, ainda que poucas pessoas procurem conhecer afundo o fenómeno. A pobreza não é uma doença súbita, é uma patologia lenta que nos vai consumindo sem darmos por isso e, um dia, podemos acordar doentes. Talvez pareça excessivo, mas vou procurar fazer uma análise da evolução portuguesa ao longo dos últimos 100 anos. Tenho 66 anos de idade, o que me coloca na qualidade de observador de, pelo menos, meio século. Convido todos os que me visitam a participarem, não como um debate, mas uma tribuna aberta a todas as opiniões. Vale a pena perder um bocadinho do nosso tempo a pensar no assunto, pois o que se mostra no horizonte, não é nenhum mar de rosas.
Para a elaboração dos meus textos, vou-me socorrer da obra Portugal Século XX de Joaquim Vieira de onde recolherei textos, dados estatísticos e fotografias.




Civis e militares patrulhando as ruas de Lisboa na revolução de Maio de 1915, a mais mortífera de todas as acções armadas desencadeadas nesta década.


Década de 1910 a 1920

Os primeiros anos da República

Estatística referente a 1910
População 5.960.056 (homens 2.828.691 - 47,5% mulheres 3.131.365 - 52,5%) (menores de 20 anos 2.615.906 - 43,9% maiores de 60 anos 568.342 - 9,5 %)
Mortalidade infantil (por mil partos) 209
População rural 3.440.076 - 57,7%
População industrial 1.281.439 – 21,5 %
População das cidades 979.724 – 16,4%
Lisboa 465.705
Porto 199.582
Analfabetos 4.477.790 – 75,1%
Emigrantes oficiais 39.502
Eleitores inscritos 696.171
Funcionários públicos 57.416
Escolas primárias oficiais 5.552
Estudantes do ensino primário 271.830
Estudantes do ensino secundário 10.826
Estudantes universitários 3.226
Ordenado de professor primário 20$000
Automóveis em circulação 679

“Uma revolução pode mudar as instituições, mas em nada alterou o carácter dos homens. Eles continuam a ser o que eram: perversos e imbecis"
Carlos da Maia

Portugal inaugura a segunda década do século XX com uma revolução, novo regime e, em breve, nova Constituição. É a hora do fervor republicano, da crença colectiva na radiosa aurora prometida pelo pessoal político que toma os lugares antes ocupados pelos dirigentes da monarquia. Contudo, os monárquicos que queiram manter-se nas estruturas do poder devem fazer a sua conversão ao republicanismo, assim, aparecem os “adesivos”, hoje conhecidos como os “vira casacas”, centenas de políticos e funcionários do anterior regime agora professando da mais incondicional ideologia republicana.
Dizia a propósito Raul Brandão: “Nestas ocasiões é que eu queria ver por dentro estes homens lívidos e com um sorriso estampado na cara, que, sobem as escadas dos ministérios, para aderirem à república!”

Para além do vago ideário republicano, não se praticam contudo quaisquer outros princípios ideológicos. A linha de rumo e as alianças dependem apenas das lutas entre rivais, de quem está na mó e cima e de quem está na mó de baixo, de quem é preciso derrubar e de quem se projecta elevar. O oportunismo é cego, junta moderados com radicais, anarquistas com direitistas e até republicanos com monárquicos. É o poder pelo poder, que não olha a meios para conseguir os seus fins.

A imagem de marca da República é a agitação permanente, encarada como normalidade quotidiana, como se os políticos não conhecessem outra forma de se bater pelo poder. Bombas, atentados, pancadaria, sabotagens, intentonas, revoluções.
Augusto de Castro ironiza: “As revoluções em Portugal tornaram-se periódicas e, como tal, não há razão para que não entrem, como a chuva ou o bom tempo, as festas mudáveis e os dias feriados, nas previsões dos meteorologistas e nos programas do Borda d’Água…”
A segurança atinge níveis inimagináveis durante os 29 governos destes 10 anos.

A pobreza que pode não ser só material, mas também de espírito e princípios, levou os políticos, tão ocupados nas lutas fratricidas pela cupidez do poder, a esquecerem-se das promessas eleitorais, muitas delas completamente fraudulentas e só eleitoralistas, de tal forma, que a prometida aurora radiante, viu-se coagida a um entardecer ainda mais sombrio.

Tendo antes apoiado os republicanos e, levado à letra as suas promessas de uma sociedade mais justa, os assalariados reclamam agora a aplicação do seu conceito de justiça social. A primeira grande greve foi a dos eléctricos de Lisboa. Seguem-se as paralisações do gás, dos sapateiros, dos padeiros, dos caixeiros em Lisboa, dos corticeiros e dos conserveiros em Setúbal, da têxtil no Porto e em Braga, dos jornaleiros no Alentejo e no Ribatejo, da CUF do Barreiro e dos ferroviários do Sul e Sueste. A tropa intervém e os carbonários atacam os sindicatos. Decretada a greve geral na capital, faz-se rusgas a sindicalistas e aumenta a violência entre grevistas e antigrevistas, mas a agitação operária não cessa ao longo da década.

A um país pobre na primeira década de novecentos, segue-se um país paralisado na segunda década do mesmo século. Devido às convulsões e à ineficácia dos governos em encontrar soluções e ainda com o agravamento provocado pelo esforço exigido pela nossa presença na Primeira Grande Guerra, para tentarmos salvar as colónias, a pobreza em vez de regredir, aumenta. Somos um país de pé descalço, roto e faminto.

A população aumenta, mas o número dos que vêem coagidos a buscar o pão noutras paragens, também sobe. O vergonhoso analfabetismo resiste, a mortandade infantil é abominável e as condições de higiene degradantes.

Mas nem todos os números estatísticos são pessimistas, em 1910 circulavam em Portugal 679 automóveis, mais 502 do que em 1900.

Desaparecido o papel social da aristocracia, o protagonismo transfere-se para as classes que apoiam a ascensão do novo poder político. As camadas salientes são naturalmente as que apoiam a República, em particular a classe média urbana: comerciantes, funcionários públicos, professores, escriturários, pequenos e médios empresários e profissões liberais, médicos e advogados.

Esta incipiente classe média, mas já ávida de apetites, de costas voltadas para a pobreza, começa a cavar o fosso entre os que podem ter e os que nada têm. Segrega-se a ela própria da realidade do país, procurando a selectividade do novo grupo social. É a maneira de vestir que exige elegância e estar de acordo com os ditames da moda, para os locais de estar e encontro elege cafés e salões, para divertimento o teatro, para o lazer a praia. O exibicionismo urbano passou a ser a sua maneira de estar na vida.

Contrastando com tradicional comércio de rua, que ainda se mantêm e incrementado pelo pelos que do interior vêm ganhar a vida na capital, Lisboa assiste ao crescimento do comércio de loja e à alvorada do apelo ao consumo, a publicidade.

Também esta década conhece o acontecimento mais representativo da cultura de um povo aliada às suas privações. Fátima talvez tenha representado a esperança que tinham perdido com a República.
Mas nem tudo se afogou neste tempo de mar encapelado, felizmente que Fernando Pessoa era bom nadador.