sábado, novembro 26, 2005



Sejamos todos Aquarianos
A Era Aquariana é uma era de Fraternidade universal e já observamos, à nossa volta, movimentos para a eliminação de barreiras e preconceitos raciais. Na actualidade, este resultado tem sido obtido, muitas vezes, através do derramamento de sangue e rebeliões. A espada, que governa a Era de Pisces, é ainda poderosa, mas cederá seu lugar à ciência, à Fraternidade e ao altruísmo, que regerão a Era Aquariana.








A Fraternidade para além da Democracia

A Democracia é a antiga forma de governo exercida pelo povo, através da eleição e delegação de poderes aos governantes, por ele escolhidos temporariamente.
Esta forma de do povo exercer a sua soberania, criada pelos Gregos e que findou com eles, não foi, contudo, estranha aos Romanos que a experimentaram na sua República.
Após o seu desaparecimento, durante os séculos sequentes, diversas formas de governo foram sucedendo-lhe, exercidas sempre à revelia da vontade popular até ao século XIX, quando os Americanos a redescobriram, não por convicção, mas por necessidade de criar uma nação.
A criação de uma nação formada por povos tão heterogéneos, cujo modo de vida se baseava na liberdade pessoal, consentida pelo colonizador que pouca importância lhes dava, além das vantagens económicas, só seria concretizável, se a aglutinação em volta de um ideal não comprometesse a sua liberdade, e essa liberdade seria assegurada pelo seu voto soberano. Assim renasceu a Democracia.
A Democracia não pode ser conectada com a Fraternidade, é uma simples regra constitucional, que se esgota no próprio acto democrático, pondo em pé de igualdade os egoístas e os fraternos, o seu fim não é a partilha mas a exigência.
A consequência primeira da Democracia são os governos, centrais, regionais ou locais, aquém deve ser estranha a Fraternidade, pois o seu dever não é a sua implementação, mas providenciar para que ela nunca seja necessária.
A partilha é o fundamento da Fraternidade, podendo esta ser exercida por democratas ou não, não estando sujeita a qualquer regra, mas só dependente da subvalorização do egoísmo do homem face ao seu semelhante.
O apelo à Fraternidade só deve ser feito, face ao fracasso ou alheamento dos governos, pelas instituições de solidariedade não governamentais, que por sua vez procurarão mobilizar a sociedade civil.
São estas instituições, ao nível das nações, os grandes paladinos da Fraternidade, a sua disponibilidade, partilha e muitas vezes abnegação, são o exemplo maior para todos os cidadãos. Respeitá-los é pouco, a nossa colaboração é o nosso melhor reconhecimento.
Não devemos confundir a Fraternidade social com a Fraternidade política, espírito da Revolução Francesa, que irmanou os Franceses na desmistificação e recusa do poder emanado pelo divino e do autoritarismo da nobreza.
Todos nascemos iguais e iguais seremos na morte, razão pela qual todos devemos ter os mesmos direitos e oportunidades. Assim sonharam os Franceses.
Mas a realidade por vezes é perversa, radicando-se no pesadelo da exclusão involuntária de alguns, desta premissa fundamental da vida. Aqui a Fraternidade colectiva é uma exigência, mobilizadora de vontades e acções, tendentes, não a praticar a caridade, mas a suavizar o infortúnio do nosso semelhante, para quem o sonho ficou por realizar.
A Fraternidade é tanto ou mais importante que a Democracia, se nesta é um dever votar, naquela é uma obrigação ajudar.
A Fraternidade é o bem mais precioso da Humanidade, o que distingue o racional do irracional, sem ela ficaremos acantonados no nosso egoísmo, cuja prevalência nos levará irremediavelmente à auto destruição.
Como nunca sabemos quando podemos vir a necessitar da Fraternidade, o melhor é não a excluirmos das nossas vidas.

sábado, novembro 19, 2005


A morte na Idade Média

Nascer, viver e morrer é uma certeza irrefutável, uma verdade universal, comum a toda a humanidade.
Este ciclo da existência acaba por igualar todos na morte, seja qual for o sexo ou condição social. O finito é irremediável para todos, como foi indispensável o nascimento.
A inquietude face à morte, foi sempre objecto de grande reflexão do homem, na incerteza do que haveria para além dela.
Esta herança milenar sofreu um rude golpe com a modernidade. A sociedade ocidental actual, cada vez mais tentada a prolongar a vida, vai distanciando-se da morte, não pensa nela, e procura esquecê-la.
Com o acentuar do laicismo, afirma-se cada vez mais que após a morte nada há mais, o que modifica o comportamento humano e incentiva cada vez mais a viver a vida, a gozar os prazeres dos sentidos corporais.
A postura do homem perante a morte nem sempre foi assim, muito em especial na Idade Média.
Com o advento da religião cristã, ao princípio influenciada pelo neoplatonismo de Santo Agostinho, o mundo sensível era apenas considerado uma sombra, um caminho para se passar do sensível ao inteligível, da sombra para a luz. Assim, a realidade encontrava-se portanto no Além.
Em vez de procurarem na Natureza o seu próprio fundamento, afirmavam que o mundo fora criado num acto de amor, que funcionava por amor, e que esse amor deveria orientar os espíritos de volta para Deus, salvando-os do Inferno.
Passava a ser dogmático que o Inferno e o Paraíso existiam e eram inseparáveis e eternos.
Como tal, nesse período, o Mundo era considerado um local de batalha constante contra o Diabo, pela salvação da alma. A religião interfere nos elementos mentais, nas acções materiais e nos aspectos culturais, alterando e modificando o comportamento social do homem ocidental.
O que esperava o crente encontrar no Além após a sua ressurreição?
Nessa passagem do mundo das imperfeições e das coisas corruptíveis para o mundo da perfeição, o homem imaginava o Além baseado na Bíblia, especialmente no Novo Testamento, nos livros apócrifos dos séculos II e III.
Apocalipse de S. PedroPedro vê os bem-aventurados na montanha sagrada; eles vivem num lugar luzente, cheio de especiarias e plantas; há um rio de fogo com rodas de fogo para castigar os pecadores e mergulhá-los
Apocalipse de S. PauloAnjos levam as almas dos justos, que repousam no Paraíso terrestre, onde corre um rio de leite e mel – Há sete castigos para os condenados: sede, frio, calor, vermes, mau-cheiro, uma roda de fogo e um rio onde eles são afogados.
Ao pensarem no Além, preocupados com o pós-morte, os medievais encaravam-no como a realidade, e o mundo dos vivos, o mundo material, efémero, um mundo de aparências, pelo que a vida no mundo deveria voltar-se para o verdadeiro significado oculto: o sentido da vida humana era dado pelo mundo do Além.
Ramon Lull (Doutrina para crianças) Filho, sabes que a morte é temível? Porque não podes fugir dela e não sabes quando ela te levará. Assim, se temes a morte, que não pode te matar mas somente o teu corpo, temerás a Deus, filho, que pode colocar o teu corpo e tua alma no fogo perdurável.
Na Idade Média a morte era o grande momento de transição, das coisas passageiras para as eternas. A morte era um rito de passagem. Era aguardada no leito em casa, onde o moribundo deveria ficar deitado de costas, para o seu rosto estar voltado para o céu.
A morte era uma cerimónia pública, um ritual compartilhado por toda a família e amigos. Os medievais pressentiam a sua chegada, e assim tinham tempo de prepara o seu ritual colectivo.
Ninguém morria só. A morte era uma festa, momento social da maior importância. Todos deveriam acompanhar a passagem do moribundo para o Além, inclusive as crianças.
O pranto era executado exclusivamente pelas mulheres; elas deveriam ficar perto do corpo, carpindo, arrancando os cabelos e rasgando as vestes. Elas eram os agentes essenciais no rito funerário, pois representavam o prelúdio da mudança para um estado superior. A preocupação não era com a morte, mas sim com a salvação da alma.
Essa era a morte lenta no leito daqueles que haviam sobrevivido ao infanticídio, às intempéries, às doenças, às fomes e às guerras. Mas havia também a morte na guerra, a morte antecipada, momento supremo do cavaleiro, que alegremente se dirigia na sua direcção.
Como o mundo dos vivos estava ligado ao dos mortos, o papel dos mosteiros era exactamente o de interlocutor junto do Além pela sociedade terrestre.
Na Idade Média a morte foi assimilada nos corações. Desejada pelos guerreiros, aguardada pelos religiosos, a morte foi sentida como um rito de passagem para um outro mundo, o Além. Os medievais entendiam o Além como uma realidade. Foi o tempo do Além, e a preocupação com a morte uma constante nas suas vidas. O Além é o espaço-espelho da sociedade que o imagina.
No final da Idade Média novas formas de compreensão da morte tomaram conta dos espíritos, como por exemplo o macabro esqueleto com a foice, que exprimiu a profunda angústia dos tempos da Peste Negra.
Para tanto, contribuíram para essa nova espiritualidade e concepção do Além, os pregadores franciscanos e dominicanos, lembrando às pessoas a corruptibilidade de todas as coisas, sendo o cadáver putrefacto a imagem preferida nos sermões.
O Além deixou de ser a razão última da própria existência, para passar a ser a chantagem para a imposição das regras e dos dogmas religiosos.

sábado, novembro 12, 2005

Socratizando

Sentem-se confortáveis a viver neste país, sabendo que uma parte dos nossos concidadãos vivem na miséria?
Já pensaram nisso?

Sentem-se confortáveis na vossa casa, sabendo que uma parte dos nossos concidadãos que vivem na miséria, não têm uma casa minimamente decente para viver ou não têm nenhuma?
Já pensaram nisso?

Sentem-se confortáveis com a certeza de que a assistência médica não vos falta, quando parte dos nossos concidadãos que vivem na miséria, não têm direito a ela?
Já pensaram nisso?

Sentem-se confortáveis quando conduzem o vosso automóvel, sabendo que uma parte dos nossos concidadãos que vivem na miséria, não têm dinheiro para comprar um bilhete dos transportes públicos?
Já pensaram nisso?

Sentem-se confortáveis quando se banqueteiam opiparamente, sabendo que parte dos nossos concidadãos que vivem na miséria, nem pão muitas vezes têm para comer?
Já pensaram nisso?

Sentem-se confortáveis vestindo boas roupas, sabendo que parte dos nossos concidadãos que vivem na miséria, nem dinheiro têm para comprar um par de alpercatas?
Já pensaram nisso?

Sentem-se confortáveis durante as férias, sabendo que parte dos nossos concidadãos que vivem na miséria, nem sequer sabem o que isso é?
Já pensaram nisso?

Sentem-se confortáveis quando se divertirem à noite, sabendo que parte dos nossos concidadãos que vivem na miséria, estão esperando por uma sopa?
Já pensaram nisso?

Sentem-se confortáveis com os filhos à vossa volta, sabendo que parte dos nossos concidadãos que vivem na miséria, estão impossibilitados de os ter?
Já pensaram nisso?

Sentem-se confortáveis quando compram presentes para os vossos filhos, sabendo que parte dos nossos concidadãos que vivem na miséria, não o podem fazer?
Já pensaram nisso?

Sentem-se confortáveis ao verem os vossos filhos felizes pela vida que lhes proporcionam, sabendo que parte dos nossos cidadãos que vivem na miséria, só vêm nos seus a tristeza de nada terem?
Já pensaram nisso?

Sentem-se confortáveis nas vossas oportunidades na vida, sabendo que parte dos nossos concidadãos que vivem na miséria, foram preteridos?
Já pensaram nisso?

Sentem-se confortáveis ao verificarem o que gastam no supérfluo, sabendo que parte dos nossos concidadãos que vivem na miséria, para eles esse supérfluo poderia ser o seu essencial?
Já pensaram nisso?

Já pensaram?
Uns pensaram e interessaram-se, mas não fizeram nada, outros pensaram mas não quiseram saber e outros ainda não pensaram, ignorando pura e simplesmente.
Restam os que se sentiram desconfortáveis, que sem alijarem as suas responsabilidades de solidariedade para terceiros, e de uma forma ou de outra, de alguma coisa prescindiram para minorar a pobreza dos nossos concidadãos. Bem hajam, estes são a esperança.
Para muitos a religião não é mais que um refúgio egoísta, onde só o seu eu conta, como se Deus fosse seu exclusivo.
Para outros a moral, a solidariedade e a fraternidade são palavras só com sentido na segunda pessoa.
Para outros a palavra cidadão desfavorecido não significa mais que um vizinho, estranho e incómodo.
Se vítimas do egoísmo, só o vosso conforto tem razão de ser, então que sociedade é esta em que vivemos?
Seremos uma sociedade vazia dos bens mais preciosos da humanidade, a fraternidade e solidariedade, onde só o egoísmo impera?
Seremos uma sociedade que só se insurge quando se sente afectada, esquecendo e marginalizando, os seus concidadãos que se encontram na miséria, como se estes não existissem?
Quem viu o apelo a uma manifestação, uma só, para exigir ao governo a concessão do mínimo indispensável, só do mínimo dos mínimos, para aqueles marginalizados socialmente pela sua condição de miseráveis? Eu não vi. Só vi manifestações do conforto a exigir mais conforto.
Isto não é o discurso de um qualquer monge mendicante, mas de um cidadão igual a vocês, que não se isenta da sua quota-parte culpa. Vejo com frequência na blogesfera apelos de solidariedade para esta ou aquela causa, o que aplaudo veementemente, mas o que proponho hoje não é um apelo à solidariedade, mas à obrigatoriedade que todos têm de reflectirem no que escrevi, o resultado dessa reflexão será o que a vossa consciência ditar.

Um país não é só dos favorecidos é de todos, e se oportunidades sorriram mais a uns que outros, os contemplados devem reconhecer humildemente a sua benesse, sem nunca esquecerem os que a não tiveram.
A sorte é muito volátil, de um dia para o outro pode tornar-se em infortúnio e aquilo que hoje não é desconfortável pode passar a sê-lo.
Já pensaram nisso?

domingo, novembro 06, 2005

Lembranças XVII

A saída do Zè Migalhas para convalescença, deixou um certo vazio não só na enfermaria do Galrinho como em todo o serviço. Já nos tínhamos habituado às cenas diárias da recuperação do Zé, e às discussões acaloradas dos companheiros de infortúnio, quanto à evolução das medidas a serem adoptadas para tal fim. Toda a gente queria dar palpites e forçar o Zé a experimentar os seus métodos.
Mas esta nostalgia não durou muito, outra fonte de agitação brotou.
Alguns dias depois da saída do Zé, numa manhã de segunda feira chuvosa, estávamos em Fevereiro, quando ia dar início ao trabalho na enfermaria, apareceu um soldado à porta gritando. Meu furriel o nosso sargento António pede para ir ao gabinete dele. Diz-lhe que já vou. Ele pediu para não se demorar, advertiu ele.
Contrariado, mas como ordens são ordens, lá fui ao gabinete. Ainda ia no corredor e já a voz do Galrinho o fazia anunciar, entremeando algumas gargalhadas, falava sem parar. O que se estará a passar para a esta hora estarem todos no gabinete do António? Pensei. Ou é alguma chatice ou então…? A curiosidade fez-me apressar o passo.
Quando cheguei, parei à porta do gabinete surpreendido com o que vi. O sargento, o Victor e o Galrinho, desfaziam-se em salamaleques e sorrisos, gesticulando como se as palavras não fossem suficientes. No centro destas tão efusivas atenções, estavam três raparigas que se esforçavam por corresponder a tal demonstração de simpatia.
Mandou-me chamar?, perguntei, no limiar da porta, dirigindo-me ao sargento. Mandei, quero apresentar as novas enfermeiras que vão auxiliar-vos. A razão de todo aquele alarido estava à frente dos meus olhos. Enquanto esboçava um sorriso fiz voar um olhar de reconhecimento sobre elas, que entretanto se tinham voltado para a porta, para verem quem era o novo espécime que tinha chegado. Não deviam nada à mãe Natureza em beleza, mas também não eram de todo desengraçadas, especialmente uma, onde o meu olhar poisou e demorou. Com ar desenvolto, alta, cabelos negros e compridos, com um toque de elegância e um olhar a tocar o sensual. As outras nem tanto conseguiam sobressair da vulgaridade.
Augusto, apresento-te a menina Aida a menina Manuela e a menina Isabel, a tal do cabelo comprido e ar desenvolto. Meninas este é o nosso furriel que toma conta das enfermarias um e dois. Muito prazer, cumprimentei, estendendo a mão depois de entrar.
O nosso director achou que um toque feminino no serviço seria bom para levantar o moral, gracejou o Victor. As flores ficam sempre bem em qualquer lugar, não poupou nos gracejos o Galrinho e eu desajeitadamente completei os cumprimentos. Talvez agora possamos almoçar mais cedo.
As senhoras enfermeiras, começou o sargento para por um pouco de cobro no marialvismo que já se adivinhava, vão ser distribuídas pelo serviço, uma fica a trabalhar com o Augusto, outra com o Galrinho e outra ficará encarregue da sala de tratamentos, onde não temos nenhum enfermeiro.
Conhecendo bem os meus camaradas, em especial o Galrinho, antes que o sargento acabasse o discurso, com uma desenvoltura que não era em mim muito habitual nestas circunstâncias, abeirei-me da Isabel e perguntei-lhe. Tem experiência em tratar feridos?
Alguma, fiz diversas vezes serviço no Banco do São José. Ok, aqui é um pouco diferente, mas com o tempo habitua-se, e sem mais nem menos, decidi, a Isabel vai trabalhar comigo. Tem bata? Tenho. Então depois de a vestir vá ter comigo à enfermaria número um. Meu sargento, é preciso mais alguma coisa? Mas que pressa, respondeu ele. Já estou muito atrasado. Encerrei a questão saindo do gabinete.
No corredor senti-me um pouco incrédulo com a minha atitude, pois não era o meu género ser normalmente tão desenvolto, isso era mais do uso e abuso do Galrinho. Mas estava contente por lhe ter passado a perna desta vez. A Isabel era sem dúvida a mais jeitosa.
Ao entrar na enfermaria, a agitação era grande, um porta voz efusivamente anunciou. Ficámos com a melhor, Augusto. As notícias corriam céleres no hospital.
Pois ficámos, mas isso deve-se cá ao je está bem? Não quero broncas, nem palavrões na enfermaria, vamos todos recebe-la direitinhos. Com tudo direitinho mesmo? Voltava o porta voz. Sorri e avisei. Vê lá se é preciso tomares um duche frio.
Minutos depois apareceu a Isabel, que na sua bata branca parecia ainda mais alta. Com um sorriso entrou dando os bons dias. Após uns segundos de apreciação, a malta respondeu em coro, bons dias senhora enfermeira. Em nome de toda a enfermaria, comecei eu, damos-lhe as boas vindas, esperando que venha a sentir bem no nosso serviço. Uma presença feminina, continuei, é um bálsamo para as nossa almas, especialmente se for tão simpática como a menina. Nem queria acreditar, estava mesmo a ser um segundo Galrinho.
Sem saber muito bem como dar seguimento a esta minha inesperada faceta de galanteador, resolvi que o melhor era começar imediatamente a trabalhar, não fosse ainda sair alguma bronca.
Este é o cama um. Foi ferido em combate por um estilhaço de morteiro. Sofreu um factura exposta do fémur com perda de tecido ósseo e muscular. Estamos a fazer o tratamento da ferida para repor o tecido muscular para depois poder ser operado. Como o doente tinha chegado ainda não havia uma semana, a ferida tinha muito mau aspecto, sendo possível ver o osso do fémur fracturado.
Quando tirei a ligadura e retirei o penso, ela esboçou um trejeito de repulsa, franzindo os olhos. Está como muito mau aspecto, opinou. Não é o médico que vem fazer o tratamento nestes casos? Claro que não, isto aqui é trabalho para os enfermeiros. Mas nos hospitais onde trabalhei… Isto aqui é diferente dos hospitais onde trabalhou, atalhei, os ferimentos também são diferentes. Sabe o que é um morteiro?, não sabe. É uma coisa cujos estilhaços provocam ferimentos dez vezes piores do que um atropelamento. As feridas além de grandes, ganham sempre grandes infecções. Não temos médicos que cheguem para tudo, é bem possível que algum do nosso trabalho seja nos hospitais civis feito por médicos, mas aqui não, somos nós que fazemos. Mas a responsabilidade, e se alguma coisa corre mal? Voltou a argumentar. A responsabilidade é do exército, mas o empenhamento para que nada corra mal é nosso. Claro que se nos enrascarmos, contamos sempre com os médicos do serviço.
Isabel, posso tratá-la assim? Ela consentiu com um sorriso. Isto é outro mundo para o qual existem outras regras, mas com o tempo vai se habituar. A propósito, já fez alguma sutura? Não. Então está na hora de começar a aprender a fazer. Novo trejeito.
Continuámos a saltar de cama em cama, até que ela me perguntou. Sabe que horas são? Olhei para o relógio e disse são duas da tarde. Não almoçam? Pergunta angustiada. Claro que almoçamos lá para as quatro horas quando acabarmos a próxima enfermaria. Ela olhou para mim com um ar incrédulo e possivelmente esfomeado. Se está com fome posso pedir um pouco de casqueiro com manteiga, para enganar a barriga. Casqueiro? Não sabe o que é? Não. É o melhor pão do mundo, informei com o ênfase da convicção.
Senhora enfermeira quer uma bolachinha, ofereceram quatro doentes ao mesmo tempo, aos quais não fugia pitada da nossa conversa. Um obrigado, foi ilustrado com um sorriso, e dirigiu-se aos quatro aceitando uma bolacha de cada um. Temos mulher pensei eu.
Para a rapaziada fechada, alguns deles já há muitos meses, uma presença feminina era a melhor terapia. Era a namorada desejada, e se ela o sabia, melhor desempenhou o seu papel. Bem hajas Isabel e todas as outras mulheres, que emprestaram um pouco de si para minorar o desalento daquela juventude, onde quer que hoje se encontrem.

terça-feira, novembro 01, 2005

Capital vs Trabalho

Capital e Trabalho, a dicotomia fundamental da economia moderna, oponentes, contudo, a sua existência de pende da interacção. O Capital propicia o trabalho, o Trabalho, por seu lado, é a base da sustentabilidade do Capital.
Desta interacção nasce a produção que tem como alvo consumidor, o Trabalho.
Como sem consumo a produção perde a sua razão de existir, e o consumidor é o Trabalho, conclui-se que o Trabalho tem de comprar a produção para que o Capital lhe dê trabalho, constatação esta que leva ainda concluir que o Trabalho produz para ele mesmo, ficando o valor acrescentado à produção para o Capital, como mais valia do seu investimento.
Valendo-se da sua influência e chantagem económica, o Capital é quem dita as regras da interacção.
Sujeito a elas, o Trabalho vê-se confrontado com a cupidez do Capital, que para aumentar os seus lucros utiliza simultaneamente dois princípios. O pagamento do salário mais baixo possível ao Trabalho e a imposição do preço ao consumidor que mais lucro lhe ofereça, que tem como resultado óbvio o empobrecimento do Trabalho directamente proporcional ao enriquecimento do Capital.
A ambicionada autonomia do Trabalho em relação ao Capital só é possível socializando, substituindo este por organizações participadas pelo Trabalho, do que resultaria a supressão do lucro do Capital, mantendo-se contudo, a causa/efeito, comprar para trabalhar.
Este modelo ambicionado nos fins do século XIX, e posto em prática nos princípios do século XX, não demonstrou a eficácia desejada, tendo degenerado para numa economia de subsistência, ou na substituição do Capital por uma ditadura económica de resultados catastróficos.
Só a socialização de todas as economias poderia conseguir êxito com este sistema económico, caso contrário o Capital remanescente conseguirá desmoroná-lo pela competitividade, o que efectivamente aconteceu.
O Capital, apesar do fracasso socializador, temeu o fenómeno, e acedeu a algumas reivindicações do Trabalho, melhorando-lhe as condições de trabalho, tendo como consequência o aumento da produção e consequente lucro, pois o Trabalho passou a comprar mais. Ironicamente o Capital não compreendeu o fenómeno, pagar mais para lucrar mais.
Mas a insaciável e imoral cupidez do Capital acaba por o levar a competir entre si, qual matilha disputando a presa.
A competição empurra o Capital para outros paradigmas da economia, diferentes do mercantilismo, onde o custo em vez do lucro é quem passa a ditar as leis do mercado.
Para conseguir o custo competitivo subverte as regras da interacção com o Trabalho, retirando-lhe o conquistado pelas suas reivindicações. O Trabalho, se por um lado beneficia do resultado desta concorrência entre o Capital, por outro lado vê cada vez mais reduzido o seu poder de compra. A interacção começa a ficar comprometida com a dificuldade da compra.
Acossado pelos seus pares, o Capital cai na armadilha da automatização, rescindindo a interacção, passa a desempregar para produzir mais barato.
Cego e desumano, o Capital, quando se apercebe que a sua produção, fonte de riqueza, não tem comprador, porque o Trabalho já não compra por não ter onde trabalhar, sucumbe no meio das suas máquinas que produzem mas não compram.
Talvez seja este o fim do actual conceito económico do Capital, se entretanto os paradigmas económicos não forem alterados.

O Trabalho sem trabalho, mas livre do Capital, com a esperança na fraternidade, renasce deixando de o ser para dar lugar a uma interacção entre homens, livres trabalhadores.

Publicado simultaneamente no Editorial