segunda-feira, maio 30, 2005

Lembranças XIII

Cinco dias depois da visita médica, fomos informados que nessa noite, chegariam por avião, os feridos da Guiné.
Na manhã seguinte cheguei ao hospital com um misto de curiosidade e de nervoso, pois não fazia a mínima ideia do que me iria esperar. Era a primeira vez que recebia feridos directamente do teatro de operações.
Ao chegar ao hospital, dirigi-me como habitualmente, em primeiro lugar ao gabinete do sargento, onde além dele já se encontrava o Galrinho, que em tom exaltado argumentava com o sargento, pedindo que ele arranjasse alguém para o ajudar, pois sozinho não dava conta do trabalho.
Pensando que se referia aos feridos que tinham acabado de chegar, com o intuito de pôr água na fervura, ofereci-me para o ajudar.
Ajudares? Gritou ele olhando para mim. Deves é estar maluco, tu é que vais precisar de quem te ajude. Fiquei calado por uns instantes, mas comecei a aperceber-me de algo anormal se estava a passar. Mas afinal o que é que se passa? Perguntei. O que é que se passa? , não sabes de nada? gritou ele, e cada vez com a voz mais alta, continuou, mobilizaram quase todos os enfermeiros do serviço, que vão apresentar-se já amanhã, e o nosso sargento, em vez de arranjar substitutos, quer que fiquemos, tu e eu, a tomar conta de mais duas enfermarias.
Fiquei, penso, com cara de parvo incrédulo, pois uma já dava tanto trabalho, como seria possível com duas.
A conversa estava a azedar, o sargento argumentava que não tinha mais ninguém disponível com qualificação para substituir os enfermeiros mobilizados, e nós que nos desenrascássemos, ao que o Galrinho ripostava dizendo para vir ele próprio ajudar em vez de ficar no gabinete.
As coisas estavam a ficar mesmo muito feias. O sargento, vermelho que nem um tomate, levantou-se e gritou-lhe que não admitia faltas de respeito e, ou o Galrinho se calava ou ainda tinha de tomar uma atitude.
O Galrinho não se intimidou, mas num tom de voz menos exaltado, retorquiu. Se o nosso sargento quer participar de mim, participe, mas ponha na participação que eu estava só a pedir ajuda por necessidade e não para faltar-lhe ao respeito.
A tropa é assim mesmo, o sargento quando não sabe o que fazer, ordena que se desenrasquem, e quando não tem argumentos ameaça com a disciplina.
Quando as coisas já estavam a entrar numa fase, quase sem retorno, providencialmente, entrou o Vítor. Bom dia, parece-me que as comadres estão zangadas, disse com o seu ar sempre bem disposto e pronto para a chalaça.
O sargento olhou para ele, e com ar de quem queria comer meio mundo, disse. Também você? Mas o que é isso de me chamar comadre? Que eu saiba ainda sou o chefe do serviço e não admito faltas de respeito, ouviu?
O Vítor, apanhado de surpresa, balbuciou uma desculpa meio entremelada, mas rapidamente recuperou o seu ar habitual e depois de inteirado do que passava, interveio.
Não vale a pena ficarmos zangados, vamos tentar arranjar um solução. Não me importo de ir trabalhar para uma enfermaria, que acha nosso primeiro?
O sargento que delegava nele toda a burocracia do serviço, já se via entulhado de papel até ao pescoço e as suas saídas da parte da tarde comprometidas; olhou de lado para ele e respondeu. Também você está a querer-me tramar? Eu não, só estou atentar ajudar a encontrar uma solução, respondeu o Vítor, esboçando um sorriso.

Fez-se silêncio no gabinete e ficamos todos a olhar para o sargento. O homem não estava nada à espera desta sugestão. Sentou-se, coçou a cara, e depois de um suspiro de desânimo e com uma voz de resignação acabou por decidir.
Está bem, o Vítor continua com o trabalho do gabinete e eu dou-vos uma mãozinha, mas não fico com nenhuma enfermaria a meu cargo, vou circulando por onde for mais necessário, mas só da parte da manhã. Claro, claro todos sabemos e compreendemos que tem os seus afazeres da parte da tarde, completou o Vítor com o seu ar sério que usava para contar anedotas.
O Galrinho já ia a abrir a boca para replicar ao sargento, mas o Vítor agarrou-lhe o braço dizendo. É melhor do que nada, já está resolvido, agora vamos todos à copa tomar um café antes de começarmos a trabalhar.
Depois do café e duma cigarrada foi como nada se tivesse passado. Amigos como sempre. Eu fiquei com as enfermarias 1 e 2 e o Galrinho com as 3 e 4. O sargento só apareceu uma vez e para dar os bons dias, dizendo aos doentes, com um ar sorridente, que nós éramos os melhores enfermeiros do hospital.

A questão continuada publicou um novo texto subordinado ao tema o Mar, desta vez sobre Sesimbra

13 Comments:

Blogger Mitsou said...

Belíssima crónica de guerra, tirada do baú. Também por lá andei, mas na minha terra, Moçambique. Beijinho grande, Augusto.

11:23 da tarde  
Blogger A. Narciso said...

Sou adepto confesso das lembranças, como já sabes Augusto. Quanto a Sesimbra já fui espreitar.
Abraço

3:11 da tarde  
Blogger Crepúsculo Maria da Graça Oliveira Gomes said...

Olá Amigo N7 te conhecia a ter vido em Africa nem que fora na guerra!...eu também vivi em Luanda.Essas coisas da guerra, n/ sei nada a não ser de umas pessoas como tu que nos fascinam quando contas as suas passagens pelo teatro de guerra, gostei de ler e vi que ainda tens tudo muito fresco na tua memória, parabéns por isso. Olha caso te interesse a post que postei, se quizeres ler a noticia agora coloquei lá um link para a página do jornal, caso queiras ir ver, tá lá á dispos~ição. Beijinhos

4:44 da tarde  
Blogger Unknown said...

Amigo, estive uns dias afastada, aproveitando um feriado por aqui, coisa que nao acontece todo dia, mas já estou de volta e, com saudades...
Muitos beijinhos e muitos sorrisos para ti!

6:53 da tarde  
Blogger Unknown said...

Já não sei que dizer destes relatos. Mas há uma questão em que vale a pena determo-nos. Como é que estes sargentos e capitães se governam agora? De certeza que não desarmaram... é esta espécie de gente que mina este país e o faz estar como está...

10:18 da tarde  
Blogger Menina Marota said...

Impressionante o teu texto! É como se estivesse lá, e vivesse todos esses momentos!
Eu tento apagar as minhas memórias más, de um tempo que mais que vi, porque era muito pequena, conheci através do meu Pai. Mas lembro algumas imagens, como "visões", que tento esquecer... como a daquele menino, meu colega que voltou sem braços, decepados pelas catanas. Mais tarde soube, que morrera no hospital de Luanda, porque não fora tratado a tempo às graves infecções que tivera daquela crueldade. Chamava.se Miguel. Nunca esqueci a dua despedida risonha, porque ia para a fazenda de uns amigos dos pais, também lá assassinados...

Mas hoje não quero falar disso. Prefiro falar de sonhos...dos que ainda consigo ter...mais não seja, através da minha escrita.

Um abraço e bom fim de semana :-)

6:55 da tarde  
Blogger BlueShell said...

Não fora a intervenção do Vítor...e a coiza azedava mesmo...

Gostei da narrativa e do que dizes quanto à autoridade, aos argumentos (ou falta deles) e à disciplina...interassante,. Gostei de ler.

Estou melhor.
Beijos fofos, BShell

8:27 da tarde  
Blogger Leonor said...

Muita gente já me acusou de bloguista narcisista, não nos comentários do blog, noutras conversas, por eu estar sempre a falar da escola.
mas a escola é o meu mundo e se eu quero falar é da escola que eu falo.
ainda bem que tu contas o teu mundo, que eu nao conheço e fico a conhecer através dos teus relatos.
outros mundos para além do meu...

10:38 da tarde  
Blogger Mitsou said...

Ó Augusto, eu venho dar-te um beijinho de bom fim de semana mas estive a ler os comentários e tenho de responder à lazuli:

Kanimambo! Tombazana, eu? Não! Mamana, quase cocuana. Maningue chunguila és tu! Tatá, linda :))

11:00 da tarde  
Blogger Crepúsculo Maria da Graça Oliveira Gomes said...

Estas histórias felizmente iguais a de tantos outros, que as desejariam contar e não conseguem, e por esse motivo vivem a desolação das depressoões para bens para ti por teres a coragem de escrever e contar as tuas passagens ao mundo virtual, esse n/ se cansa de as ler, e de pensar no que passaram os nosos queridos soldados da guerra colonial, e que hoje em dia é um pecado falar na nobreza que os nossos gravos tiveram.Um grande beijo

12:46 da tarde  
Blogger Estrela do mar said...

...eu não li o texto...sou sincera...logo que comecei a ver coisas escritas relacionadas com hospitais...achei melhor passar à frente...mas Guiné, mais própriamente Bafatá...foi onde o meu pai esteve por altura da guerra...e ele conta, que independentemente da situação em que os portugueses estavam, aquilo era um "mmundo à parte"...espectacular mesmo...por isso se compreende que quem passe por lá...não consiga nunca se alienar daquele continente...

Tem um bom fds Augusto.
Um beijo*.

1:03 da tarde  
Blogger augustoM said...

Adryka, a causa primeira e última das minhas memórias "Lembranças" é prestar homenagem a toda uma juventude, que não descutiu a Pátria, e sofreu e alguns ainda sofrem com aguerra colonial, que hoje em dia, todos querem esquecer, como se os seus actos de dever para com a Pátria, tivessem sido meras acções criminosas.
Um abraço. Augusto

3:29 da tarde  
Blogger Ana João said...

estas lembranças que não são minhas nem de ninguem que me é proximo ou sequer semelhantes, impressionou-me...muito bom!
gostei!

9:14 da tarde  

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