Lembranças XII
O nosso reino não foi difícil de conquistar e a conquista consolidou-se com a nossa actuação. Um sentimento de fraternidade unia-nos neste destino impiedoso que a todos atingia. Eles entre ajudavam-se e nós procurávamos ajudar todos. Não era só o tratamento do corpo que contava, mas o auxílio emocional de que muitos deles precisavam, muito mais do qualquer cura física.
Para a maior parte dos que me lêem hoje, a uma distância de cerca de quarenta anos dos factos da minha narração, compreendo que seja muito difícil imaginar que a rapaziada daquela altura, especialmente da província, não era tão desenvolta, tão “evoluída” como a de hoje. Uma grande parte eram rapazes simples, habituados a uma vida simples, no seu mundo da aldeia, o seu estado de espírito era uma mistura de saudade e medo de como iriam ser recebidos com as suas deficiências.
A tudo isto temos de adicionar os traumas provocados pelo medo em situações muito difíceis por que tiveram de passar, bem como os traumas provocados pelas actuações brutais a que a guerra inevitavelmente conduz.
Matar, coisa simples de ver num filme, na prática não o é assim. Para muitos, após o ardor do combate, onde impera o irracional instinto da sobrevivência, relembrar os acontecimentos é um sofrimento de como se foi capaz de fazer o que se fez.
A nossa solidariedade levou-nos a um envolvimento total, ao ponto de muitas vezes, darmos por nós a chorar com eles. Chorar e respeitar o choro dos outros, tornou-se a principal regra emocional da vida no hospital.
O Galrinho, aquele homenzarrão, de um metro e quase noventa, com um vozeirão de meter medo, tornou-se no enfermeiro mais preferido pelos doentes. Ficaram celebres as cartas que escrevia às namoradas dos que estavam impossibilitados fisicamente de o fazer. Nestas cartas, nas quais fazia participar toda a enfermaria, o que a princípio não passava de uma paródia, entremeada de algumas grosserias, acabava sempre por todos emprestarem um pouco de cada um, obtendo como resultado belíssimas cartas de amor. A seu tempo contarei um dos episódios mais bonitos, que ficará para sempre gravado na minha memória.
A rotina na enfermaria, durante os quinze dias que seguiram à minha entrada em funções, decorreram sem incidentes de maior, para além do facto de ter recebido um doente que se encontrava internado na enfermaria prisão.
Era um rapaz alto, muito bem educado, cerimonioso até, que tinha o maxilares inferiores e parte do superior completamente desfeitos. Não podia falar, comunicava por escrito, e recebia os alimentos, que só podiam ser líquidos, por um tubo enfiado na boca. Como não tinha ligaduras, era muito confrangedor ver o estado em que tinha ficado a sua cara.
A sua escrita de comunicação, pela forma, rapidamente conquistou a minha simpatia. Os seus pedidos começavam mais ou menos sempre assim: “Desculpe se não fosse muito incómodo precisava disto ou da quilo” ou “se não estiver a importunar e for oportuno gostaria…”
Claro que o aparecimento deste soldado suscitou o interesse geral, não pelo facto de estar ferido ou da sua aparência horrorosa, mas pela sua transferência da enfermaria prisão para o serviço. Todos queriam saber a sua história.
Os mais atrevidos não perderam muito tempo a perguntar-lhe o que tinha sucedido. Ele ouvia as perguntas e respondia, por escrito, que preferia não falar no caso, mostrando nos olhos uma profunda tristeza. Viemos mais tarde a saber por outro ferido, que tinha pertencido à mesma companhia, toda a sua história.
O pelotão onde ele ia em patrulha, em Angola, tinha caído numa emboscada. Deitados no chão na berma da picada, os nossos soldados estavam a ser atingidos pelo fogo cruzado do inimigo. Já eram numerosos os feridos e os mortos devido à nossa posição desvantajosa em relação aos guerrilheiros, e tudo fazia crer que a chacina iria continuar. Apavorados, os soldados gritavam insistentemente pelo alferes, para que este desse uma ordem que os pudesse tirar dali, mas essa ordem não se fazia ouvir. É no meio deste desespero que ele resolve ir procurar o alferes, indo encontrá-lo, completamente aterrorizado, escondido num buraco, com a cabeça entre as pernas, todo enroscado, a chorar desesperadamente, chamando pela ajuda da mãe.
A outra face da moeda da obediência é a confiança que se deposita no oficial ,um ser superior, capaz de resolver todas as situações, por muito difíceis que sejam, para salvaguardar a vida dos seus homens, como se ele não fosse também, um ser humano com as suas fragilidades.
Ao ver o oficial gritou-lhe: “meu alferes estamos perdidos os gajos matam-nos a todos, o que é havemos de fazer”. O alferes, paralisado pelo medo, não respondeu continuando a chorar. Ele voltou a insistir gritando desesperadamente, “meu alferes, meu alferes faça qualquer coisa pelo amor de Deus ou morremos todos”. O alferes limitou-se a olhar para ele e pediu-lhe “salva-me, salva-me”. Tresloucado pelo desespero do medo, olhou para o oficial e chamando-lhe cobarde deu-lhe um ou dois tiros matando-o imediatamente. Em seguida, possivelmente num momento de lucidez, reconheceu o que tinha feito e tentou suicidar-se, apontando a arma por baixo do queixo . Não morreu mas ficou no estado em que se encontrava.
Este é um dos episódios mais dramáticos da guerra que vitimou duas pessoas, o alferes que morreu por não ser um super-homem e o soldado que ficaria para o resto da vida com a cara extremamente deformada, mesmo após diversas intervenções cirúrgicas. Ambos tinham entre 21 e 22 anos.
Numa das visitas diárias do médico, aquém pertenciam os doentes da minha enfermaria, este informou-me de que os doentes que estivessem em melhores condições seriam transferidos para o piso inferior, pois estava para chegar um novo contingente de feridos vindos da Guiné. A tal “leva” de que tinha falado o enfermeiro com experiência.
Informa-se que a questão continuada reiniciou as publicações, convidando os visitantes a visitá-la e darem a sua opinião sobre o seu novo formato.
Para a maior parte dos que me lêem hoje, a uma distância de cerca de quarenta anos dos factos da minha narração, compreendo que seja muito difícil imaginar que a rapaziada daquela altura, especialmente da província, não era tão desenvolta, tão “evoluída” como a de hoje. Uma grande parte eram rapazes simples, habituados a uma vida simples, no seu mundo da aldeia, o seu estado de espírito era uma mistura de saudade e medo de como iriam ser recebidos com as suas deficiências.
A tudo isto temos de adicionar os traumas provocados pelo medo em situações muito difíceis por que tiveram de passar, bem como os traumas provocados pelas actuações brutais a que a guerra inevitavelmente conduz.
Matar, coisa simples de ver num filme, na prática não o é assim. Para muitos, após o ardor do combate, onde impera o irracional instinto da sobrevivência, relembrar os acontecimentos é um sofrimento de como se foi capaz de fazer o que se fez.
A nossa solidariedade levou-nos a um envolvimento total, ao ponto de muitas vezes, darmos por nós a chorar com eles. Chorar e respeitar o choro dos outros, tornou-se a principal regra emocional da vida no hospital.
O Galrinho, aquele homenzarrão, de um metro e quase noventa, com um vozeirão de meter medo, tornou-se no enfermeiro mais preferido pelos doentes. Ficaram celebres as cartas que escrevia às namoradas dos que estavam impossibilitados fisicamente de o fazer. Nestas cartas, nas quais fazia participar toda a enfermaria, o que a princípio não passava de uma paródia, entremeada de algumas grosserias, acabava sempre por todos emprestarem um pouco de cada um, obtendo como resultado belíssimas cartas de amor. A seu tempo contarei um dos episódios mais bonitos, que ficará para sempre gravado na minha memória.
A rotina na enfermaria, durante os quinze dias que seguiram à minha entrada em funções, decorreram sem incidentes de maior, para além do facto de ter recebido um doente que se encontrava internado na enfermaria prisão.
Era um rapaz alto, muito bem educado, cerimonioso até, que tinha o maxilares inferiores e parte do superior completamente desfeitos. Não podia falar, comunicava por escrito, e recebia os alimentos, que só podiam ser líquidos, por um tubo enfiado na boca. Como não tinha ligaduras, era muito confrangedor ver o estado em que tinha ficado a sua cara.
A sua escrita de comunicação, pela forma, rapidamente conquistou a minha simpatia. Os seus pedidos começavam mais ou menos sempre assim: “Desculpe se não fosse muito incómodo precisava disto ou da quilo” ou “se não estiver a importunar e for oportuno gostaria…”
Claro que o aparecimento deste soldado suscitou o interesse geral, não pelo facto de estar ferido ou da sua aparência horrorosa, mas pela sua transferência da enfermaria prisão para o serviço. Todos queriam saber a sua história.
Os mais atrevidos não perderam muito tempo a perguntar-lhe o que tinha sucedido. Ele ouvia as perguntas e respondia, por escrito, que preferia não falar no caso, mostrando nos olhos uma profunda tristeza. Viemos mais tarde a saber por outro ferido, que tinha pertencido à mesma companhia, toda a sua história.
O pelotão onde ele ia em patrulha, em Angola, tinha caído numa emboscada. Deitados no chão na berma da picada, os nossos soldados estavam a ser atingidos pelo fogo cruzado do inimigo. Já eram numerosos os feridos e os mortos devido à nossa posição desvantajosa em relação aos guerrilheiros, e tudo fazia crer que a chacina iria continuar. Apavorados, os soldados gritavam insistentemente pelo alferes, para que este desse uma ordem que os pudesse tirar dali, mas essa ordem não se fazia ouvir. É no meio deste desespero que ele resolve ir procurar o alferes, indo encontrá-lo, completamente aterrorizado, escondido num buraco, com a cabeça entre as pernas, todo enroscado, a chorar desesperadamente, chamando pela ajuda da mãe.
A outra face da moeda da obediência é a confiança que se deposita no oficial ,um ser superior, capaz de resolver todas as situações, por muito difíceis que sejam, para salvaguardar a vida dos seus homens, como se ele não fosse também, um ser humano com as suas fragilidades.
Ao ver o oficial gritou-lhe: “meu alferes estamos perdidos os gajos matam-nos a todos, o que é havemos de fazer”. O alferes, paralisado pelo medo, não respondeu continuando a chorar. Ele voltou a insistir gritando desesperadamente, “meu alferes, meu alferes faça qualquer coisa pelo amor de Deus ou morremos todos”. O alferes limitou-se a olhar para ele e pediu-lhe “salva-me, salva-me”. Tresloucado pelo desespero do medo, olhou para o oficial e chamando-lhe cobarde deu-lhe um ou dois tiros matando-o imediatamente. Em seguida, possivelmente num momento de lucidez, reconheceu o que tinha feito e tentou suicidar-se, apontando a arma por baixo do queixo . Não morreu mas ficou no estado em que se encontrava.
Este é um dos episódios mais dramáticos da guerra que vitimou duas pessoas, o alferes que morreu por não ser um super-homem e o soldado que ficaria para o resto da vida com a cara extremamente deformada, mesmo após diversas intervenções cirúrgicas. Ambos tinham entre 21 e 22 anos.
Numa das visitas diárias do médico, aquém pertenciam os doentes da minha enfermaria, este informou-me de que os doentes que estivessem em melhores condições seriam transferidos para o piso inferior, pois estava para chegar um novo contingente de feridos vindos da Guiné. A tal “leva” de que tinha falado o enfermeiro com experiência.
Informa-se que a questão continuada reiniciou as publicações, convidando os visitantes a visitá-la e darem a sua opinião sobre o seu novo formato.
9 Comments:
Confesso, Augusto, que quando vi o tamanho deste texto estremeci. A verdade é que vamos escrevendo cada vez mais nos artigos... falo por mim, que antes era tão sintética e agora encontro-me tão perifrástica.
mas, interessante de ler o que nele contaste e mais leria se tivesses continuado.
a solidariedade que se estabelece nas situações onde há o bom e o mau é sublime.
Esta tua narativa comoveu-me; eu suspeitava que assim fosse...mas o modo realista como está escrito...Esta "tocou" fundo!
(vou espreitar)
Jinho e carinho, BShell
Caro Augusto
Felizmente para mim nunca fui militar pelo que não tive de enfrentar os horrores da guerra. Nem os traumas. As suas narrativas, dariam um optimo livro. Já pensou nisso?
Recordações amigo recordações e o que seria de nós sem essas recordações, recordar é viver.Muitas não são muito boas mas n/ há nada que o tempo n/ cure.Beijo e boa semana
Achei interessante e até "romântico" aquela circunstância do "namorar" em grupo e disso sairem belas (e provavelmente bem sinceras, na maior parte dos casos) cartas de amor... Enfim, há situações, na vida, em que tudo se partilha e é esse sentimento de partilha que nos ampara, e permite seguir em frente. Também por isso lamentamos, com tanta facilidade e com enorme razão, a perda dessas vivências comunitárias, muito mais enriquecedoras e humanas, quando "voltamos`ao mundo normal", à "civilização", onde prolifera tanta falta de civismo e de humanidade, sem que consigamos, ou saibamos como conseguir recuperar e preservar esse nosso lado mais humano, perdidos na selva (mais ou menos de cimento) em que se transformaram as sociedades actuais. Essa é a revolução que realmente falta...
Mais uma das muitas histórias que o tempo não deixa apagar da memória.
Concordo com muito do que disse sobre o abrupto mas continuo a achar que é corajoso e inteligente.
Um abraço Augusto, e não deixe nunca de dizer o que pensa.
Passei hoje para deixar-te um beijo amigo e um sorriso... :)
Uma das coisas que por vezes é esquecida é os traumas que a guerra cria com os seus horrores. Excelente crónica Augusto.
Abraço
Minha jóia...está a começar de trovejar aqui...
Tenho de me apressar e enviar apenas um beijo Cheio De TERNURA!
BShell
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