
Manuel Dias de seu nome, nasceu em 1872 em Vila de Rei na Beira Alta. Ao contrário dos seus conterrâneos trocou como destino de migração o Brasil por Lisboa.
Assentou praça no regimento de cavalaria Lanceiros 2 e acompanhou em África, durante a rebelião dos Vátuas, Mouzinho de Albuquerque, Paiva Couceiro entre outros. Tomou parte nas batalhas de Coolelo e Macontene, tendo feito parte do pequeno grupo, chefiado por Mouzinho de Albuquerque que tomou de assalto Chaimite, o reduto sagrado dos Vátuas, aprisionando o rei africano Gungunhana. Pelo seu comportamento em combate, muito cedo foi promovido a sargento. Este homem é o meu avô paterno.
Teria eu cerca de 12 anos de idade, quando foi exibido nos cinemas de Lisboa o filme de Jorge Bruno do Canto, Chaimite. O meu avô, na esperança de matar saudades e reviver algum do seu passado, foi logo ver o filme convidando-me para ir com ele ao Paris Cinema.
Achei o filme fantástico, as cenas de guerra muito bem feitas para a época, com cargas de cavalaria e tudo, mais a heroicidade dos protagonistas, fez as minhas delicias. O entusiasmo foi tal, que queria ir ver o filme outra vez, mas o meu avô, com cara de zangado, atalhou, comigo não, ver esta chusma de mentiras até faz dó. É uma aldrabice pegada. Não foi isto que se passou.
Então não é verdade? O avô esteve lá. Por isso mesmo, sei bem como tudo se passou, ainda não estou esquecido. O Joaquim que eu conheci, não foi o herói que querem aqui demonstrar (o Joaquim era o primeiro nome de Mouzinho de Albuquerque), bebia que nem um cacho. O grande homem da guerra, continuava ele, foi o Paiva Couceiro, esse sim é que sabia comandar.
O avô também andou com ele? Se andei com ele? Combati ao lado dele numa das piores batalhas que tivemos, quando íamos a caminho de Mandlakasi vindos de Lourenço Marques.
Antes de continuar, o meu avô procurou um sítio para nos sentarmos, pois a solenidade que emprestava aos assuntos de África, não permitia que estivéssemos de pé. O local encontrado foi um banco no Jardim da Estrela, onde começou a sua narrativa.
A nossa coluna que tinha cerca de 300 soldados foi atacada por cerca de 13.000 guerreiros do Gundunhana.
Foi uma grande aflição, nunca tínhamos visto tantos pretos juntos, com pinturas de guerra, emplumados, saltando e gritando insultos na língua deles. Uma parte vinha armada de lanças e zagaias, outra com armas de fogo inglesas, fornecidas pelo pirata do Cecil Rhodes da África do Sul, que estava nos bastidores de toda a rebelião, e tinha como objectivo, apossar-se do porto de Lourenço Marques, para utilizar como porta de saída para o mar.
Toda a tropa estava aterrorizada, ninguém sabia o que fazer, alguns soldados começaram a entrar em pânico. Não fosse a pronta intervenção do Paiva Couceiro, dando ordens para uma rápida formação do quadrado, correcta colocação das metralhadoras e canhões, e pessoalmente colocar-se ao lado dos soldados para estes não vacilarem, não sei se terias hoje avô.
Os pretos lançavam ataques sucessivos, sobretudo em direcção das metralhadora, pois sabiam que estas, quando submetidas a um fogo intenso, encravavam com facilidade, e sem elas estávamos perdidos.
Foi por pouco que não furaram o quadrado o que seria o nosso fim, numa luta corpo a corpo seríamos chacinados. O Couceiro corria de lado para o outro todo o quadrado gritando, aguentem rapazes, aguentem se não estamos perdidos, fogo neles, ninguém se deita no chão. Isso é que era um oficial. Não fosse a coragem dele não sei o que teria sucedido. Por fim os pretos desistiram de continuar os assaltos e retiraram-se. Tivemos muitas baixas entre mortos e feridos, mas matamos mais de 400 guerreiros negros. Foi uma vitória tal que o Gungunhana fugiu para Chaimite.
Então foram atrás dele até Chaimite e prenderam-no, interrompia eu a narração, abanando a cabeça prosseguiu, não o perseguimos, não tínhamos muitas condições de voltar a enfrentar um outro ataque, e haviam alguns régulos na zona com muitos guerreiros.
Eu estava delirante a ouvir o meu avô, era a primeira vez que o ouvia falar de África, com tanto detalhe, normalmente quando falava da guerra era sempre só com uma ou outra fase lacónica.
Depois fui colocado no aquartelamento de Gaza, sob o comando do Mouzinho de Albuquerque, continuou ele.
Ainda me lembro como se fosse hoje, era noite de natal, estávamos todos cheios de saudade da família e com uns copitos. Os oficiais estavam também a celebrar a consoada, quando o Mouzinho de Albuquerque, com uma grande bebedeira, o que era habitual, começou a gritar, vamos a Chaimite apanhar o Gungunhana, quem quer vir comigo? Era uma loucura, o Gungunhana contava com muitos guerreiros, e para mais estava no seu terreno. Como aos bêbados só os bêbados respondem, dois tenentes e cerca de 50 soldados ofereceram-se como voluntários. Eu nem queria acreditar no que se estava a passar, era uma loucura completa. Pegaram nas armas e munições e puseram-se em marcha em direcção a Chaimite. Ao meu lado estava o médico que nos acompanhava. Olhei para ele e disse, doutor é melhor irmos também, é preciso alguém que esteja sóbrio para olhar por este bando de bêbados. Estava convencido que após alguns quilómetros de marcha com a bebedeira curada, voltávamos para trás.
Foi nessa noite que prenderam o Gungunhana? Nem pensar, respondeu o meu avô, Chaimite ficava a três dias de caminho de onde nós estávamos. Foi uma caminhada desastrosa, faltava comida e água, e nem os comprimidos de quinino tínhamos levado.
O Mouzinho quando lhe passou a bebedeira, orgulhoso como era, não quis dar o braço a torcer, e lá continuamos com muito sacrifício direitos a Chaimite. Era um suicídio, se aparecessem os guerreiros do Gungunhana nenhum de nós ficaria para contar a história.
No dia 28 de Dezembro, à noitinha, avistamos as paliçadas da povoação, e ainda me lembro do que o Mouzinho disse, ou atacamos de surpresa ou estamos perdidos. Dentro da aldeia deveriam estar mais de 500 guerreiros, não percebi de que nos valia a surpresa, quando numericamente era de um para dez, que poderíamos fazer. O médico ainda tentou dissuadi-lo, mas a vergonha de voltar para trás falou mais alto. Desembainhou a espada olhou para nós e disse ao ataque. Todos corremos atrás dele, em direcção à paliçada. Estava convencido que ia morrer ali, mas como era sargento também tinha de dar o exemplo.
Os santinhos estiveram connosco, sem saber como, o Joaquim encontrou um estreita entrada na paliçada, e depois de penetrarmos na povoação, a primeira palhota que encontramos foi a Gungunhana, que rapidamente aprisionámos. A surpresa fora total.
Em pouco tempo ficamos rodeados por uma multidão de guerreiros que ficaram estupefactos ao verem o seu rei preso. O Mouzinho com receio de que algum dos régulos presentes, com pretensões ao reino do Gungunhana tomasse a iniciativa de ordenar um ataque, mandou que os fuzilassem rapidamente.
A seguir sobe a ameaça da espada de Mouzinho, o Gungunhana ordenou aos seus guerreiros que depusessem as armas. O dia estava ganho por milagre, um louco se transformou em herói. A última cena que ficou para a história é a resposta do Gungunhana quando o Mouzinho o mandou sentar no chão, e ele respondeu que não se sentava porque estava sujo. Mas acabou por se sentar à força. O leão de Gaza estava acabado definitivamente.
Fui encarregado de o trazer prisioneiro para Lourenço Marques, para embarcar para o Continente. No final tive pena dele, tinha sido um rei poderoso e reconhecido pelo rei de Portugal aquém pagava vassalagem, agora não passava de um prisioneiro vexado. A ambição perdeu-o.
Levantámo-nos e continuámos o regresso a casa calados, que ficava na Calçada da Estrela. Eu com o pensamento nas imagens do filme, o meu avô possivelmente, em alguma lembrança mais íntima, que não tinha sido oportuna entrar na narração.