sábado, novembro 19, 2005


A morte na Idade Média

Nascer, viver e morrer é uma certeza irrefutável, uma verdade universal, comum a toda a humanidade.
Este ciclo da existência acaba por igualar todos na morte, seja qual for o sexo ou condição social. O finito é irremediável para todos, como foi indispensável o nascimento.
A inquietude face à morte, foi sempre objecto de grande reflexão do homem, na incerteza do que haveria para além dela.
Esta herança milenar sofreu um rude golpe com a modernidade. A sociedade ocidental actual, cada vez mais tentada a prolongar a vida, vai distanciando-se da morte, não pensa nela, e procura esquecê-la.
Com o acentuar do laicismo, afirma-se cada vez mais que após a morte nada há mais, o que modifica o comportamento humano e incentiva cada vez mais a viver a vida, a gozar os prazeres dos sentidos corporais.
A postura do homem perante a morte nem sempre foi assim, muito em especial na Idade Média.
Com o advento da religião cristã, ao princípio influenciada pelo neoplatonismo de Santo Agostinho, o mundo sensível era apenas considerado uma sombra, um caminho para se passar do sensível ao inteligível, da sombra para a luz. Assim, a realidade encontrava-se portanto no Além.
Em vez de procurarem na Natureza o seu próprio fundamento, afirmavam que o mundo fora criado num acto de amor, que funcionava por amor, e que esse amor deveria orientar os espíritos de volta para Deus, salvando-os do Inferno.
Passava a ser dogmático que o Inferno e o Paraíso existiam e eram inseparáveis e eternos.
Como tal, nesse período, o Mundo era considerado um local de batalha constante contra o Diabo, pela salvação da alma. A religião interfere nos elementos mentais, nas acções materiais e nos aspectos culturais, alterando e modificando o comportamento social do homem ocidental.
O que esperava o crente encontrar no Além após a sua ressurreição?
Nessa passagem do mundo das imperfeições e das coisas corruptíveis para o mundo da perfeição, o homem imaginava o Além baseado na Bíblia, especialmente no Novo Testamento, nos livros apócrifos dos séculos II e III.
Apocalipse de S. PedroPedro vê os bem-aventurados na montanha sagrada; eles vivem num lugar luzente, cheio de especiarias e plantas; há um rio de fogo com rodas de fogo para castigar os pecadores e mergulhá-los
Apocalipse de S. PauloAnjos levam as almas dos justos, que repousam no Paraíso terrestre, onde corre um rio de leite e mel – Há sete castigos para os condenados: sede, frio, calor, vermes, mau-cheiro, uma roda de fogo e um rio onde eles são afogados.
Ao pensarem no Além, preocupados com o pós-morte, os medievais encaravam-no como a realidade, e o mundo dos vivos, o mundo material, efémero, um mundo de aparências, pelo que a vida no mundo deveria voltar-se para o verdadeiro significado oculto: o sentido da vida humana era dado pelo mundo do Além.
Ramon Lull (Doutrina para crianças) Filho, sabes que a morte é temível? Porque não podes fugir dela e não sabes quando ela te levará. Assim, se temes a morte, que não pode te matar mas somente o teu corpo, temerás a Deus, filho, que pode colocar o teu corpo e tua alma no fogo perdurável.
Na Idade Média a morte era o grande momento de transição, das coisas passageiras para as eternas. A morte era um rito de passagem. Era aguardada no leito em casa, onde o moribundo deveria ficar deitado de costas, para o seu rosto estar voltado para o céu.
A morte era uma cerimónia pública, um ritual compartilhado por toda a família e amigos. Os medievais pressentiam a sua chegada, e assim tinham tempo de prepara o seu ritual colectivo.
Ninguém morria só. A morte era uma festa, momento social da maior importância. Todos deveriam acompanhar a passagem do moribundo para o Além, inclusive as crianças.
O pranto era executado exclusivamente pelas mulheres; elas deveriam ficar perto do corpo, carpindo, arrancando os cabelos e rasgando as vestes. Elas eram os agentes essenciais no rito funerário, pois representavam o prelúdio da mudança para um estado superior. A preocupação não era com a morte, mas sim com a salvação da alma.
Essa era a morte lenta no leito daqueles que haviam sobrevivido ao infanticídio, às intempéries, às doenças, às fomes e às guerras. Mas havia também a morte na guerra, a morte antecipada, momento supremo do cavaleiro, que alegremente se dirigia na sua direcção.
Como o mundo dos vivos estava ligado ao dos mortos, o papel dos mosteiros era exactamente o de interlocutor junto do Além pela sociedade terrestre.
Na Idade Média a morte foi assimilada nos corações. Desejada pelos guerreiros, aguardada pelos religiosos, a morte foi sentida como um rito de passagem para um outro mundo, o Além. Os medievais entendiam o Além como uma realidade. Foi o tempo do Além, e a preocupação com a morte uma constante nas suas vidas. O Além é o espaço-espelho da sociedade que o imagina.
No final da Idade Média novas formas de compreensão da morte tomaram conta dos espíritos, como por exemplo o macabro esqueleto com a foice, que exprimiu a profunda angústia dos tempos da Peste Negra.
Para tanto, contribuíram para essa nova espiritualidade e concepção do Além, os pregadores franciscanos e dominicanos, lembrando às pessoas a corruptibilidade de todas as coisas, sendo o cadáver putrefacto a imagem preferida nos sermões.
O Além deixou de ser a razão última da própria existência, para passar a ser a chantagem para a imposição das regras e dos dogmas religiosos.

12 Comments:

Blogger Leonor said...

ola augusto. o teu artigo (bem escrito e de um modo simples, cativante de ler) reportou-me para um livro do qual eu li trechos nas aulas de historia quando passei pela idade media "a chanson de rolland". ali a morte é tao assidua que é vista como a coisa mais importante da vida.

abraço da leonoreta

7:53 da tarde  
Blogger Maria said...

Diz Philippe Ariès na sua "História da Morte no Ocidente": "O homem submetia-se na morte a uma das grandes leis da espécie e não pensava nem em se lhe esquivar nem em a exaltar. Aceitava-a simplesmente como justa, o que carecia de solenidade para marcar a importância das grandes fases por que todas as vidas devem passar."
Nesses tempos recuados a morte estava no centro da vida. Agora queremo-la distante.
"O cemitério contemporâneo realiza um ideal:Nada de velhos, nem pó, nem moribundos,nem desgaste, nem cadáveres, nem cemitérios.Apenas uma sociedade "limpa" e lisa (..)regida pelo ardente desejo de dissimular e eliminar a morte". Assim o diz a Enciclopédia Einaudi e no nosso quotidiano isso mesmo comprovamos.
Excelente tema para um post. Gostei da forma como o apresentaste.
Bjos.

12:02 da manhã  
Blogger hfm said...

Gostei desta reflexão seguramente a despertar em cada um outra de índole semelhante.

9:42 da tarde  
Blogger Que Bem Cheira A Maresia said...

Olá :)

Vem brindar connosco, vens? ;)

Beijinhos

3:39 da manhã  
Blogger Unknown said...

Augusto meu amigo, sem fé o mundo seria uma catástrofe, já assim sabe Deus, o problema é que o homem usa a fé e Deus a seu belo prazer e invoca o seu nome sem ser na defesa dos seus valores, isto acontece com qualquer religião. Neste época que estamos a atravessar não existe religião mais tolerante que a crista.
Beijo para ti

1:55 da tarde  
Blogger Leonor said...

augusto
é uma honra para mim ter-te como leitor. tiro o meu chapéu ao teu comentário.

gostei muito

abraço da leonoreta

7:23 da tarde  
Blogger Noélia de Santa Rosa said...

Augusto, meu querido amigo, tu sabes já o que penso sobre este tema.
É dificil para uma ilusão chamada ser humano entender o que é DEUS ou antes como eu lhe chamo a energia pura e primordial da qual emana tudo.

As religiões nasceram antes da "política" como forma de organizar a sociedade humana e a melhor forma de se controlar um ser humano é pelo medo, pelo terror, pela angústia do desconhecido.

A morte na idade média era algo com que se convivia diariamente e de forma aterrorizante quer pelas guerras quer pelas pestes que grassaram milhares de individuos por toda a Europa da época.

Comprava-se um pouco do PAZ de espírito a troco de umas missinhas para as alminhas do Purgatório e do Inferno e ficava-se bem com a consciência.

Repara nos quadros do Bosh ou do Brugel e vê lá se não é o mesmo retrato da sociedade que impera hoje?

O ser humano não muda! Refina!
Cada dia mais selvagem e bestial!

Beijos
Noel

9:46 da tarde  
Blogger Unknown said...

Amigo Augusto... Ler-te é sempre um prazer imenso e sempre escolhes temas que nos fazem refletir bastante e o fazes de forma primorosa, com o dom de quem realmente sabe o que escreve, o que sente, o que quer transmitir...
Como li em um comentário anterior... "tiro o chapéu" para ti, meu amigo!
É uma honra poder ler-te e ter-te como meu leitor também!
Muitos beijos, flores e sorrisos para ti!

4:39 da manhã  
Blogger A. Narciso said...

Este é um tema que dá pano para mangas. O sentido da morte só existe tendo a imagem de Deus no horizonte. Para quem nao a tem nao faz qualquer sentido... é pura e simplesmente uma lei da natureza que temos de aceitar... por vezes a custo. Excelente artigo Augusto.
Abraço

2:43 da tarde  
Blogger Unknown said...

Amigo Augusto!
Hoje passo para deixar-te muitos beijinhos e muitos sorrisos para um fim de semana bem feliz!

8:42 da tarde  
Blogger AJB - martelo said...

isto é que é gostar de história...

9:58 da tarde  
Blogger Matheus said...

hello is my name ,matheus,and like go hístory is not


like go

10:21 da tarde  

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