Lembranças VIII
Gozada a licença de fim de semana, apresentei-me no domingo às 21 horas no Hospital Militar Principal, onde encontrei alguns dos meus camaradas de Mafra também destacados para enfermeiros.
Depois de os cumprimentar fomo-nos apresentar ao Oficial de Dia. Esperámos cerca de meia hora à porta do seu gabinete, até aparecer um cabo, com uma apresentação tão desleixada, inconcebível para a disciplina a que estávamos habituados, que perguntou o que queríamos. Vimo-nos apresentar ao oficial de dia. Com um olhar enfastiado indagou; de onde vêm? De Mafra nosso cabo, respondemos muito aprumados. Têm onde ficar em Lisboa? Voltou a perguntar. Sim temos, respondemos de novo. Então toca a andar para casa e passem por cá amanhã de manhã para a presentação. Voltou-nos as costas e foi-se embora. Seguimo-lo com o olhar e verificamos que entrava no gabinete do oficial de dia e se sentou em cima da secretária deste que estava recostado num cadeirão a jogar às cartas, com outras pessoas que por estarem de costas não conseguimos identificar o posto.
Após uns momentos de espanto, alguém exclamou, malta vamo-nos embora, parece que saímos do inferno e caímos no céu.
Nas segunda feira seguinte lá nos encontrávamos de novo, no meio de uma confusão de trajos civis, fardas e batas de enfermagem, numa coabitação do mais informal possível. Ninguém saudava ninguém. Os médicos eram tratados por doutores como de um hospital civil se tratasse, os sargentos trajando à civil só eram reconhecidos quando usavam bata com as respectivas divisas.
Após uma longa espera, apareceu um sargento amanuense que nos pediu as guias de marcha. Depois do almoço fomos informados do local onde iríamos ter as aulas de enfermagem, horários e respectivo programa.
O curso de enfermagem compunha-se de duas partes distintas. A teórica, que era ministrada num complexo de edifícios situados na Avenida Infante Santo, do lado esquerdo de quem desce, por um oficial médico, e a prática, nas instalações do serviço de cirurgia, no outro lado da mesma avenida, mesmo em frente, por um sargento enfermeiro.
Repensando melhor o meu destino militar, cheguei à conclusão de que, se tinha de tirar um curso de enfermagem, esse curso para além de enriquecer os meus conhecimentos, quem sabe se ainda me poderia vir a ser útil um dia na vida civil. Com este pensamento resolvi aplicar-me seriamente no curso com o objectivo de ser um enfermeiro o mais qualificado possível.
Das aulas teóricas, além de chatas, pois o médico que as ministrava não tinha o mínimo de habilidade didáctica, não há nada de especial a salientar, o que já não se pode dizer das práticas, onde assisti às cenas mais hilariantes, protagonizadas por alguns dos meus camaradas, que querendo mostrar a sua destreza na aprendizagem, expunham-se ao ridículo geral.
Para quem inicia a parte prática da enfermagem, sem sombra de dúvida, o aprender a dar injecções não é muito fácil. A lição era ministrada pelo sargento monitor, não utilizando para tal qualquer simulacro de paciente, mas sim directamente nos doentes.
O mais complicado, por incrível que pareça, é o espetar da agulha na nádega do paciente. A introdução da agulha exige duas coisas: primeiro que ela penetre bem fundo, segundo que essa penetração não cause dor. Com a prática os dois objectivos são conseguidos sem qualquer dificuldade, mas para quem se vai iniciar nestas espetadelas, uma força invisível trava normalmente a mão no momento de espetar, não conseguindo a agulha penetrar na carne.
Na primeira aula, o sargento depois de explicar teoricamente a técnica, fez uma demonstração de como se pode espetar correctamente a agulha sem causar dor. É preciso lembrar que as agulhas naquela altura, eram mais primitivas que as que são agora usadas, o que equivale a dizer que eram mais grossas.
Pegando na agulha pelo canhão que a liga à seringa, com dois dedos o polegar e o indicador voltada para baixo, isto é paralela à palma da mão, mas sem tocar nela, com um movimento brusco, bate com força com as costas da mão no rabo do paciente, em seguida espeta a agulha e para finalizar, já com a mão livre, volta a dar uma palmada enérgica com a palma da mão aberta no mesmo sítio. A ideia era provocar duas dores relativamente pequenas para despistar, a introdução da agulha no intervalo destas, ficando o doente somente com a impressão das palmadas e não da espetadela da agulha.
Isto dito assim parece fácil, mas não o é, é preciso muita prática para o fazer. O que o sargento quis é que treinássemos a introdução da agulha com um só golpe forte e rápido. Claro que a tudo isto temos de acrescentar o protesto e medo das cobaias, que não tinham outro remédio se não aguentar, mas que tornavam as coisas mais difíceis, ficando muito tensos enrijando a nádega onde íamos espetar a agulha.
Enquanto todos ensaiávamos pela primeira vez o espetar da agulha, com algum nervosismo que nos fazia tremer a mão, colocando-a com uma pancada só no rabo do doente e muitas vezes o travão do subconsciente, limitava-nos a força no momento final, ficando a agulha só parcialmente espetada, um dos nossos colegas, digo camaradas, julgando-se já senhor da técnica, resolveu pura e simplesmente imitar a técnica da demonstração do sargento. Bate com as costas da mão, espeta a agulha em seguida e depois de dar a palmada final com a palma da mão aberta, verifica que não está agulha nenhuma na nádega do doente. Completamente fora de si, desesperado, começa a procurar a agulha no rabo do doente, pensando que sem querer tinha enterrado a agulha toda inclusive o canhão. Claro que o que ocorreu foi a agulha ao embater na nádega que esta estava tensa, e não ia com a força suficiente, esta saltou sem que ele desse por isso. Foi um coro de gargalhadas na enfermaria, só não foi geral porque o doente vitima desta estupidez não achou graça nenhuma.
Na tropa encontramos sempre, como se diz agora, cada cromo.
Depois de os cumprimentar fomo-nos apresentar ao Oficial de Dia. Esperámos cerca de meia hora à porta do seu gabinete, até aparecer um cabo, com uma apresentação tão desleixada, inconcebível para a disciplina a que estávamos habituados, que perguntou o que queríamos. Vimo-nos apresentar ao oficial de dia. Com um olhar enfastiado indagou; de onde vêm? De Mafra nosso cabo, respondemos muito aprumados. Têm onde ficar em Lisboa? Voltou a perguntar. Sim temos, respondemos de novo. Então toca a andar para casa e passem por cá amanhã de manhã para a presentação. Voltou-nos as costas e foi-se embora. Seguimo-lo com o olhar e verificamos que entrava no gabinete do oficial de dia e se sentou em cima da secretária deste que estava recostado num cadeirão a jogar às cartas, com outras pessoas que por estarem de costas não conseguimos identificar o posto.
Após uns momentos de espanto, alguém exclamou, malta vamo-nos embora, parece que saímos do inferno e caímos no céu.
Nas segunda feira seguinte lá nos encontrávamos de novo, no meio de uma confusão de trajos civis, fardas e batas de enfermagem, numa coabitação do mais informal possível. Ninguém saudava ninguém. Os médicos eram tratados por doutores como de um hospital civil se tratasse, os sargentos trajando à civil só eram reconhecidos quando usavam bata com as respectivas divisas.
Após uma longa espera, apareceu um sargento amanuense que nos pediu as guias de marcha. Depois do almoço fomos informados do local onde iríamos ter as aulas de enfermagem, horários e respectivo programa.
O curso de enfermagem compunha-se de duas partes distintas. A teórica, que era ministrada num complexo de edifícios situados na Avenida Infante Santo, do lado esquerdo de quem desce, por um oficial médico, e a prática, nas instalações do serviço de cirurgia, no outro lado da mesma avenida, mesmo em frente, por um sargento enfermeiro.
Repensando melhor o meu destino militar, cheguei à conclusão de que, se tinha de tirar um curso de enfermagem, esse curso para além de enriquecer os meus conhecimentos, quem sabe se ainda me poderia vir a ser útil um dia na vida civil. Com este pensamento resolvi aplicar-me seriamente no curso com o objectivo de ser um enfermeiro o mais qualificado possível.
Das aulas teóricas, além de chatas, pois o médico que as ministrava não tinha o mínimo de habilidade didáctica, não há nada de especial a salientar, o que já não se pode dizer das práticas, onde assisti às cenas mais hilariantes, protagonizadas por alguns dos meus camaradas, que querendo mostrar a sua destreza na aprendizagem, expunham-se ao ridículo geral.
Para quem inicia a parte prática da enfermagem, sem sombra de dúvida, o aprender a dar injecções não é muito fácil. A lição era ministrada pelo sargento monitor, não utilizando para tal qualquer simulacro de paciente, mas sim directamente nos doentes.
O mais complicado, por incrível que pareça, é o espetar da agulha na nádega do paciente. A introdução da agulha exige duas coisas: primeiro que ela penetre bem fundo, segundo que essa penetração não cause dor. Com a prática os dois objectivos são conseguidos sem qualquer dificuldade, mas para quem se vai iniciar nestas espetadelas, uma força invisível trava normalmente a mão no momento de espetar, não conseguindo a agulha penetrar na carne.
Na primeira aula, o sargento depois de explicar teoricamente a técnica, fez uma demonstração de como se pode espetar correctamente a agulha sem causar dor. É preciso lembrar que as agulhas naquela altura, eram mais primitivas que as que são agora usadas, o que equivale a dizer que eram mais grossas.
Pegando na agulha pelo canhão que a liga à seringa, com dois dedos o polegar e o indicador voltada para baixo, isto é paralela à palma da mão, mas sem tocar nela, com um movimento brusco, bate com força com as costas da mão no rabo do paciente, em seguida espeta a agulha e para finalizar, já com a mão livre, volta a dar uma palmada enérgica com a palma da mão aberta no mesmo sítio. A ideia era provocar duas dores relativamente pequenas para despistar, a introdução da agulha no intervalo destas, ficando o doente somente com a impressão das palmadas e não da espetadela da agulha.
Isto dito assim parece fácil, mas não o é, é preciso muita prática para o fazer. O que o sargento quis é que treinássemos a introdução da agulha com um só golpe forte e rápido. Claro que a tudo isto temos de acrescentar o protesto e medo das cobaias, que não tinham outro remédio se não aguentar, mas que tornavam as coisas mais difíceis, ficando muito tensos enrijando a nádega onde íamos espetar a agulha.
Enquanto todos ensaiávamos pela primeira vez o espetar da agulha, com algum nervosismo que nos fazia tremer a mão, colocando-a com uma pancada só no rabo do doente e muitas vezes o travão do subconsciente, limitava-nos a força no momento final, ficando a agulha só parcialmente espetada, um dos nossos colegas, digo camaradas, julgando-se já senhor da técnica, resolveu pura e simplesmente imitar a técnica da demonstração do sargento. Bate com as costas da mão, espeta a agulha em seguida e depois de dar a palmada final com a palma da mão aberta, verifica que não está agulha nenhuma na nádega do doente. Completamente fora de si, desesperado, começa a procurar a agulha no rabo do doente, pensando que sem querer tinha enterrado a agulha toda inclusive o canhão. Claro que o que ocorreu foi a agulha ao embater na nádega que esta estava tensa, e não ia com a força suficiente, esta saltou sem que ele desse por isso. Foi um coro de gargalhadas na enfermaria, só não foi geral porque o doente vitima desta estupidez não achou graça nenhuma.
Na tropa encontramos sempre, como se diz agora, cada cromo.
9 Comments:
Tropa fandanga. Trouxe-me más recordações ... quartel de Cavalaria de Santarém. Que enjoo!
Bom fim de semana.
Cromos há em todo lado, na tropa ainda se notam mais, como tu fizes-te notar... hehehehe
Boa história, para desanuviar
Grande história.Acabaste de contar aquilo que eu considero uma história de bastidores,que como sempre são muito hilariantes,mas que a maioria das vezes ficam entre quatro paredes.
Abraço.
Gostei da narrativa...LOLOL. BS
Já tinha tentado deixar uma impressão de leitura. Consigo agora deixar esse comentário: simplesmente delicioso, o texto.
E penso: é importante andar por aqui, partilharmos todas estas palavras fraternas, envolventes, estimulantes, com os outros, porém, um dia há um crash, e há perdas. Valia a pena selecionar alguns dos textos e editar um livro.
Que achas da sugestão? Estou mesmo a falar do que escreves.
Abraço
Luís
Dá vontade de ler estas tuas recordações, ou estas viagens pela memoria, como lhe quizermos chamar. Como já alguem dize, são tempos que não vivi, mas que me dá gozo conhecer.
Forte Abraço Augusto
Por acaso aprendi a dar injecções, mas não sou enfermeira nem nada que se pareça. Acontece é que a minha avó era enfermeira e já velhota sofria muito de reumático. Para o reumático ela levava umas injecções que ela insistia em dar a si mesma. Mas um dia achou por bem ensinar-me a dar-lhe as injecções porque era doloroso para ela aquela ginástica de dar a injecção em si mesma. Ensinou-me essa técnica da palmada e a seguir espetar com firmesa na nádega. Claro que também tive esse travão do subconsciente e a agulha não espetou bem à primeira. Ela, coitadita, fez um esgar de desconforto mas aguentou estoicamente. Mas à segunda, a injecção lá saiu e daí em diante fui eu sempre a dar-lhe as picadelas. Recebi um elogio e tanto dela, que me disse que eu dava mesmo muito bem as injecções. Já dei também à minha mãe, a vacina da gripe. Realmente, o saber não ocupa lugar e é sempre bom saber fazer estas coisas. Beijinhos, Augusto!
Olá Whitball
Muito obrigado, o fim de semana foi óptimo.
Um abraço. Augusto
Olá Armando
Tropa fandanga, adjectivo apropriado.
Um abraço. Augusto
Olá Ana Maria
Já vi espetar agulhas em muitas coisas, mas em laranjas é a primeira vez.
Um beijo. Augusto
Olá Polittikus
É o que nós temos mais são cromos.
Um abraço. Augusto
Olá Jorge
Vai tudo do empenhamento de quem executa.
Um abraço. Augusto
Olá Arte of Love
Esta não é bem uma história de bastidores, o palco onde actuavamos era bem grande.
Um abraço. Augusto
Olá Sell
Ainda bem que gostaste.
Um beijo. Augusto
Olá Fernando
É preciso ter muita coragem para incentivar os aprendizes de feiticeiro.
Um abraço. Augusto
Olá Tim Bora
Como em todas as profissões há sempre uns menos habilidosos.
Um abraço. Augusto
Olá Luís
Obrigado pela sugestão, mas parece-me que os meus textos não têm interesse para serem publicados, nem tão pouco a qualidade que seria exigida, contudo tenho todos guardados bem como todos os vossos comentários.
Um baraço. Augusto
Olá Paopbocca
Obrigado também pela sugestão da publicação.
Um abraço. Augusto
Olá Alexandre Narciso
Espero que gostes da continuação, olha que promete.
Um abraço. Augusto
Olá AnaP
Saber dar injecções é uma coisa muito útil, nunca se sabe quando aparece uma emergência.
Um beijo. Augusto
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