Falar de pobreza IV
Falar da pobreza, parece estar na ordem do dia, ainda que poucas pessoas procurem conhecer afundo o fenómeno. A pobreza não é uma doença súbita, é uma patologia lenta que nos vai consumindo sem darmos por isso e, um dia, podemos acordamos doentes. Talvez pareça excessivo, mas vou procurar fazer uma análise da evolução portuguesa ao longo dos últimos 100 anos. Tenho 66 anos de idade, o que me coloca na qualidade de observador de, pelo menos, meio século. Convido todos os que me visitam a participarem, não como um debate, mas uma tribuna aberta a todas as opiniões. Vale a pena perder um bocadinho do nosso tempo a pensar no assunto, pois o que se mostra no horizonte, não é nenhum mar de rosas.
Para a elaboração dos meus textos, vou-me socorrer da obra Portugal Século XX de Joaquim Vieira de onde recolherei textos, dados estatísticos e fotografias.
Nem sempre a miséria é material
Década de 1930 a 1940
O Estado Novo
Estatística referente a 1930
População 6.825.883 (homens 3.255.876 47,7% mulheres 3.570.007 52,3%) menores de 20 anos 2.860.881 41,9% maiores de 60 anos 663.030 9,7%)
Mortalidade infantil (por mil partos) 143
Esperança média de vida homens 44,8 anos
Esperança média de vida mulheres 49,2 anos
População de Lisboa 591.939
População do Porto 229.794
Analfabetos 61,9%
Emigrantes oficiais (por mil habitantes) 3,4
Eleitores inscritos 574.260
Escolas primárias 7.729
Estudantes do ensino primário 367.330
Estudantes do ensino secundário 17.829
Estudantes universitários 6.800
Automóveis em circulação 25.056
Mais difícil que conquistar o poder é mantê-lo. As questões de regime estão todas em aberto. Procura-se alguém que as consiga resolver.
O que faremos nós com esta ditadura? É a questão que os oficiais conservadores colocam após conquistar o poder. Mais difícil é decidir: Que Constituição? Regresso à monarquia? Ditadura a prazo? Os militares mantêm o poder ou passam-no aos civis? Como evitar a instabilidade anterior, contra a qual se afirmou ter sido feita a revolução? Mais urgente ainda, como pagar a dívida ao estrangeiro e anular a bancarrota nacional?
Em 1928, com Carmona em Belém é convidado para a pasta das finanças o Dr. Oliveira Salazar. O seu princípio fundamental é “produzir e poupar”.
«Entre as duas opções, uma de produção-consumo, ligada ao interesse pelos bens materiais e acarretando miséria e corrupção material e moral, e outra de produção sem consumo, uma «economia familiar» que significa mais que qualquer indústria, por poderosa que seja, por mãos poderosa que seja, garanto que é nesta que reside a salvação nacional» Oliveira Salazar
É Salazar quem passa a marcar o ritmo do regime declarando a fase da «ditadura financeira» após a «ditadura militar» finalizando com a «ditadura nacional» com o slogan «Tudo pela Nação, nada contra a Nação».
A Grande Ilusão
«É necessário que, de uma vez para sempre, Portugal deixe de dar ao mundo a impressão de ser um grande manicómio.»
Almirante Luís Magalhães Correia, ministro da marinha, Abril de 1931
Num mundo à beira da catástrofe, Portugal vive risonho os anos trinta, metido na ordem por uma ditadura e contente com isso. É o Portugal agarrado à «ilusão da sua felicidade», observa Antoine de Saint-Exupéry, de passagem por Lisboa.
O responsável pela ilusão chama-se Oliveira Salazar. De “mago das finanças” ascende a primeiro-ministro e fundador ideológico de um novo regime: o Estado Novo.
Com o fundamento de um Estado pobre mas honrado e sossegado, nem que para isso seja preciso usar a força, assenta a sua política na «economia familiar» na procura de uma estabilidade que contrasta com a agitação além-fronteiras.
Se a adesão das classes médias, antigas apoiantes da República, acabam por estabelecer a diferença, fazendo pender o pêndulo para o lado do regime, já para as classes operárias ou rurais, que não vislumbravam qualquer melhoria da sua condição de pobre, o Estado Novo representa uma grande desilusão.
Elegendo a agricultura como o principal motor da produção nacional, dá início á campanha de produção de trigo, especialmente no Alentejo, onde a condição do trabalhador rural, piora consideravelmente ao ver-se reduzido ao trabalho sazonal das sementeiras e das ceifas. São enormes ranchos de gentes que se deslocam para trabalhar nas grandes propriedades, por tempo limitado, em deploráveis condições de conforto, por salários de miséria. No Norte, a agricultura de subsistência que continua, em nada contribui para o desenvolvimento da economia e, juntamente com as regiões mais do interior, a subsistência ronda constantemente a fome.
A industria encorajada pelo novo proteccionismo que a poupa da concorrência, conserva os antigos vícios. Em vez de reinvestir e produzir riqueza, canaliza os lucros para prédios de rendimento, propriedades e fausto social. Não evolui, continuando a utilizar os mesmos métodos artesanais, alheia à modernização, procura a sua rentabilidade na utilização de mão-de-obra barata.
O único investimento em novas indústrias é o capital estrangeiro. Especialmente o britânico.
O sector dos serviços é quase inexistente.
As crianças começam muito novas a trabalhar, com ordenados proporcionais ao seu tamanho e idade. A escolaridade obrigatória é ignorada para que as crianças ingressem no mundo trabalho.
No mundo rural, onde trabalha cerca de metade da população, o analfabetismo por um lado e a sujeição milenar à Igreja, leva a uma resignação consentida, de que a virtude reside na família, por muito pobre que seja. No fabril, a consciência da sua miséria começa a ser evidenciada pelos primeiros movimentos operários.
Devido à crise que grassa no estrangeira face à tragédia que se aproxima, a emigração é suspensa e, famílias inteiras, não têm outra perspectiva de vida que não seja mendigar de aldeia em aldeia.
Mas entre a classe média, que vive com alguns sinais de riqueza, e a pobreza, uma nova classe caricata começa, cada vez mais a desenvolver-se. Os citadinos que, embora sem rendimentos que o justifique, por vezes até muito baixos, levam uma vida de ilusão, dando um ar de prosperidade, em especial a Lisboa, que não correspondia à realidade.
Para isso concorre o Estado, fomentando o cinema, o teatro, os desfiles, os bailes, a rádio, tudo sob a batuta ideológica do novo governo. Tudo concorre para o ideal: “Pobrezinho mas honrado”
A cidade assiste a um incremento do comércio nunca visto, o número de lojas aumenta consideravelmente. O caixeiro e caixeira, são classes de promoção social, contudo só em 1931 é proibido o mugir leite na rua.
A miséria urbana e rural, embora um pouco mais disfarçada, continua a ser um flagelo para a maior parte dos portugueses.
O país conhece a maior pujança demográfica, mas não fruto da fertilidade, mas da redução da mortalidade infantil, para que concorreram as medidas tomadas na década anterior. Mas a esperança de vida continua muito baixa em relação ao resto da Europa. À frente das doenças mortais estão os resultados das deficiências alimentares, a tuberculose, que só por si vitima mais de dez mil doentes por ano.
Em 1936 é criada a Legião Português, uma milícia cujo objectivo é combater o comunismo.
Falar da pobreza, parece estar na ordem do dia, ainda que poucas pessoas procurem conhecer afundo o fenómeno. A pobreza não é uma doença súbita, é uma patologia lenta que nos vai consumindo sem darmos por isso e, um dia, podemos acordamos doentes. Talvez pareça excessivo, mas vou procurar fazer uma análise da evolução portuguesa ao longo dos últimos 100 anos. Tenho 66 anos de idade, o que me coloca na qualidade de observador de, pelo menos, meio século. Convido todos os que me visitam a participarem, não como um debate, mas uma tribuna aberta a todas as opiniões. Vale a pena perder um bocadinho do nosso tempo a pensar no assunto, pois o que se mostra no horizonte, não é nenhum mar de rosas.
Para a elaboração dos meus textos, vou-me socorrer da obra Portugal Século XX de Joaquim Vieira de onde recolherei textos, dados estatísticos e fotografias.
Nem sempre a miséria é material
Década de 1930 a 1940
O Estado Novo
Estatística referente a 1930
População 6.825.883 (homens 3.255.876 47,7% mulheres 3.570.007 52,3%) menores de 20 anos 2.860.881 41,9% maiores de 60 anos 663.030 9,7%)
Mortalidade infantil (por mil partos) 143
Esperança média de vida homens 44,8 anos
Esperança média de vida mulheres 49,2 anos
População de Lisboa 591.939
População do Porto 229.794
Analfabetos 61,9%
Emigrantes oficiais (por mil habitantes) 3,4
Eleitores inscritos 574.260
Escolas primárias 7.729
Estudantes do ensino primário 367.330
Estudantes do ensino secundário 17.829
Estudantes universitários 6.800
Automóveis em circulação 25.056
Mais difícil que conquistar o poder é mantê-lo. As questões de regime estão todas em aberto. Procura-se alguém que as consiga resolver.
O que faremos nós com esta ditadura? É a questão que os oficiais conservadores colocam após conquistar o poder. Mais difícil é decidir: Que Constituição? Regresso à monarquia? Ditadura a prazo? Os militares mantêm o poder ou passam-no aos civis? Como evitar a instabilidade anterior, contra a qual se afirmou ter sido feita a revolução? Mais urgente ainda, como pagar a dívida ao estrangeiro e anular a bancarrota nacional?
Em 1928, com Carmona em Belém é convidado para a pasta das finanças o Dr. Oliveira Salazar. O seu princípio fundamental é “produzir e poupar”.
«Entre as duas opções, uma de produção-consumo, ligada ao interesse pelos bens materiais e acarretando miséria e corrupção material e moral, e outra de produção sem consumo, uma «economia familiar» que significa mais que qualquer indústria, por poderosa que seja, por mãos poderosa que seja, garanto que é nesta que reside a salvação nacional» Oliveira Salazar
É Salazar quem passa a marcar o ritmo do regime declarando a fase da «ditadura financeira» após a «ditadura militar» finalizando com a «ditadura nacional» com o slogan «Tudo pela Nação, nada contra a Nação».
A Grande Ilusão
«É necessário que, de uma vez para sempre, Portugal deixe de dar ao mundo a impressão de ser um grande manicómio.»
Almirante Luís Magalhães Correia, ministro da marinha, Abril de 1931
Num mundo à beira da catástrofe, Portugal vive risonho os anos trinta, metido na ordem por uma ditadura e contente com isso. É o Portugal agarrado à «ilusão da sua felicidade», observa Antoine de Saint-Exupéry, de passagem por Lisboa.
O responsável pela ilusão chama-se Oliveira Salazar. De “mago das finanças” ascende a primeiro-ministro e fundador ideológico de um novo regime: o Estado Novo.
Com o fundamento de um Estado pobre mas honrado e sossegado, nem que para isso seja preciso usar a força, assenta a sua política na «economia familiar» na procura de uma estabilidade que contrasta com a agitação além-fronteiras.
Se a adesão das classes médias, antigas apoiantes da República, acabam por estabelecer a diferença, fazendo pender o pêndulo para o lado do regime, já para as classes operárias ou rurais, que não vislumbravam qualquer melhoria da sua condição de pobre, o Estado Novo representa uma grande desilusão.
Elegendo a agricultura como o principal motor da produção nacional, dá início á campanha de produção de trigo, especialmente no Alentejo, onde a condição do trabalhador rural, piora consideravelmente ao ver-se reduzido ao trabalho sazonal das sementeiras e das ceifas. São enormes ranchos de gentes que se deslocam para trabalhar nas grandes propriedades, por tempo limitado, em deploráveis condições de conforto, por salários de miséria. No Norte, a agricultura de subsistência que continua, em nada contribui para o desenvolvimento da economia e, juntamente com as regiões mais do interior, a subsistência ronda constantemente a fome.
A industria encorajada pelo novo proteccionismo que a poupa da concorrência, conserva os antigos vícios. Em vez de reinvestir e produzir riqueza, canaliza os lucros para prédios de rendimento, propriedades e fausto social. Não evolui, continuando a utilizar os mesmos métodos artesanais, alheia à modernização, procura a sua rentabilidade na utilização de mão-de-obra barata.
O único investimento em novas indústrias é o capital estrangeiro. Especialmente o britânico.
O sector dos serviços é quase inexistente.
As crianças começam muito novas a trabalhar, com ordenados proporcionais ao seu tamanho e idade. A escolaridade obrigatória é ignorada para que as crianças ingressem no mundo trabalho.
No mundo rural, onde trabalha cerca de metade da população, o analfabetismo por um lado e a sujeição milenar à Igreja, leva a uma resignação consentida, de que a virtude reside na família, por muito pobre que seja. No fabril, a consciência da sua miséria começa a ser evidenciada pelos primeiros movimentos operários.
Devido à crise que grassa no estrangeira face à tragédia que se aproxima, a emigração é suspensa e, famílias inteiras, não têm outra perspectiva de vida que não seja mendigar de aldeia em aldeia.
Mas entre a classe média, que vive com alguns sinais de riqueza, e a pobreza, uma nova classe caricata começa, cada vez mais a desenvolver-se. Os citadinos que, embora sem rendimentos que o justifique, por vezes até muito baixos, levam uma vida de ilusão, dando um ar de prosperidade, em especial a Lisboa, que não correspondia à realidade.
Para isso concorre o Estado, fomentando o cinema, o teatro, os desfiles, os bailes, a rádio, tudo sob a batuta ideológica do novo governo. Tudo concorre para o ideal: “Pobrezinho mas honrado”
A cidade assiste a um incremento do comércio nunca visto, o número de lojas aumenta consideravelmente. O caixeiro e caixeira, são classes de promoção social, contudo só em 1931 é proibido o mugir leite na rua.
A miséria urbana e rural, embora um pouco mais disfarçada, continua a ser um flagelo para a maior parte dos portugueses.
O país conhece a maior pujança demográfica, mas não fruto da fertilidade, mas da redução da mortalidade infantil, para que concorreram as medidas tomadas na década anterior. Mas a esperança de vida continua muito baixa em relação ao resto da Europa. À frente das doenças mortais estão os resultados das deficiências alimentares, a tuberculose, que só por si vitima mais de dez mil doentes por ano.
Em 1936 é criada a Legião Português, uma milícia cujo objectivo é combater o comunismo.
13 Comments:
*UM MAR DE EXCELENTE LEITURA*, POR AQUI*!
E... para alem de excelente, impulsiona-nos a reflectir!
...........
CARO AUGUSTO*,
sera' que recebeu meu e-mail onde acuso_E AGRADECO_ a recepcao de tao EXTRAORDINARIO, POR EXECELENTE, LEITURA!(???)
_Ja' lho comuniquei por varios modos mas, estou com a sensacao que nenhuma de minhas mensagens Lhe chegou "aos olhos"!
_Irei tambem escrever (dentro de dias) via correio tradicional!
Fica o abraco agradecido!
Heloisa B.P.
*************
saudade é de origem bem portuguesa, mas desses tempos essa palavra não encaixa...
«Tudo concorre para o ideal: “Pobrezinho mas honrado”»
O ideal de hoje é pobrezinho e desempregadinho mas hiperinfrastruturado – TGVs, OTAs, Estádios, etc.
Venho ao "poço do conhecimento"
Parabéns pelo excelente trabalho que aqui encontro.
Também concordo com o Diogo.
Miséria, de barriga cheia de infraestruturas.
Beijos para a querida Heloisa
Beijos de boa semana para ti.
Augusto,
Enquanto fomos um povo fechado ao exterior, deixamo-nos levar por ideologias, e realidades que nos eram transmitidas que em nada eram verdadeiras face ao que se passava no resto da Europa. Assim sendo íamos sendo um país "Pobrezinho mas honrado", e vivia-se com a ilusão de que não era possível fazer mais e melhor, nem ser mais feliz.
Pura mentira... Pura ilusão...
Abraço.
A miséria que existe não é só financeira, é também e fundamentalmente cultural.
Meu caro Augusto
Como Alentejano muito entrado na vida, permito-me uma "achega" ao seguinte:
"São enormes ranchos de gentes que se deslocam para trabalhar nas grandes propriedades, por tempo limitado, em deploráveis condições de conforto, por salários de miséria."
Estes "enormes ranchos de gente" eram migrações sazonais, vindas da região das Beiras e mesmo de mais acima. Verificavam-se na época das ceifas e nós, alentejamos, chamavamos-lhe "ratinhos".
Desafio Literário
O Charles Quint e o Tiago do "Notas Soltas, Ideias Tontas" lançaram-nos um desafio:
Escrever a 5a. linha da página 161 do livro que estamos a ler ou lemos ultimamente.
Dando seguimento à iniciativa, segue o convite a alguns que cremos ainda não terem sido desafiados:
António
Augusto
Belzebu
Betty
Herético
Lúcia
Maria Papoila
Marta
Paula
Silêncio Culpado
OLÁ AUGUSTO
Toda a «pobreza» me preocupa, mas...neste momento, a pobreza de espírito toca-me profundamente.
Volto a visitar-te
tenho-o feito em silêncio
porque o negro me enche o peito,
Nos meus olhos as lágrimas apago...
Anseio por um pouco de respeito
Quem me conhece...
já me viu sorridente,
com uma ligeireza nas palavras
e no olhar
É isso: Asas abertas!
Voar, preciso de voar
para onde o carinho e a Paz
me acompanhem
Preciso de Amigos/as
que murmurem palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago! É disso que preciso.
Quando a raiva e a dor me apertam no peito, por vezes, desabafo.
Sou Feliz por sentir que ALGUÉM se preocupa comigo.
Beijos.
a miséria. sim. a verdadeira não é material.
antes matéria interior.
"desassossegadamente" :) aqui.
para deixar um abraço. que o tempo não desabraça.
Os teus posts são fantásticos, Augusto.A história do século XX muito bem contada. Historiador!
Beijinhosss
Por deformação profissional, fui analisar os números. Constato que a esperança de vida aumentou bastante em 10 anos, de 1920 a 1930. E, a emigração foi reduzida quase a zero. Como? Dá que pensar. Além disso o número de escolas primárias subiu em flecha bem como o n. de estudantes do ensino superior.
Abraços
Olá Augusto, só passei para deixar um beijinho e desejo de boa semana.
Enviar um comentário
<< Home