domingo, novembro 11, 2007


Falar de pobreza III

Falar da pobreza, parece estar na ordem do dia, ainda que poucas pessoas procurem conhecer afundo o fenómeno. A pobreza não é uma doença súbita, é uma patologia lenta que nos vai consumindo sem darmos por isso e, um dia, podemos acordamos doentes. Talvez pareça excessivo, mas vou procurar fazer uma análise da evolução portuguesa ao longo dos últimos 100 anos. Tenho 66 anos de idade, o que me coloca na qualidade de observador de, pelo menos, meio século. Convido todos os que me visitam a participarem, não como um debate, mas uma tribuna aberta a todas as opiniões. Vale a pena perder um bocadinho do nosso tempo a pensar no assunto, pois o que se mostra no horizonte, não é nenhum mar de rosas.
Para a elaboração dos meus textos, vou-me socorrer da obra Portugal Século XX de Joaquim Vieira de onde recolherei textos, dados estatísticos e fotografias.





Pobres a comerem na "Cozinha Económica" a sopa dos pobres

Década de 1920 a 1930

Os últimos anos da atribulação republicana

Estatística referente a 1920

População 6.032.991 (homens 2.855.818 47,5% mulheres 3.177.173 52,7%) (menores de 20 anos 2.594.925 43,0% maiores de 60 anos 592.375 9,8%)
Mortalidade infantil (por mil partos) 284
Esperança média de vida homens 35,8 anos
Esperança média de vida mulheres 40,1 anos
População de Lisboa 486,372
População do Porto 203,091
Analfabetos 4.277.341
Emigrantes oficiais 64.651
Eleitores inscritos 686.536
Escolas primárias 6.868
Estudantes do ensino primário 289.605
Estudantes do ensino secundário 13.748
Estudantes universitários 3.464
Automóveis em circulação 3.000


Até o Zé Povinho (…) já bebe champanhe, transformando as nossas hortas em cabarés de Montmartre
Urbano Rodrigues

A classe média dos anos vinte, é de uma futilidade confrangedora. Lisboa passa a imitar Paris, Berlim ou Nova Iorque, acompanha-se com espumante a jazz-band, o fox-trot e o charleston, usa-se o cabelo na razão inversa a extensão dos colares, moldam-se as roupas ao corpo e solta-se o espírito e a leviandade. Explode o consumo, associado a uma esfusiante alegria de viver.

Não interessa que o país esteja endividado ou que a moeda tenha caído num abismo cambial, o que é preciso é gastar, gastar, mesmo aquilo que se não tem e, para isso lá está a casa de “prego”. Esta classe subserviente dinamiza a economia num falso sobreposto de prosperidade, onde uma minoria finge ser aquilo que não é e, uma larga maioria é obrigada a ser o que é. Miserável.

Se emissões fiduciárias sem a indispensável cobertura em ouro, fazem chover rios de dinheiro sem o correspondente aumento da riqueza e proporcionam uma inflação galopante que só agrava mais a vida de quem é pobre, já por seu lado o abutre capitalista, tira o melhor partido da situação. Entre 1920 e 1926 aparecem 18 novos bancos. Nacinal Ultramarino, Espírito Santo, Burnay, Sottomayor e o Borges & Irmão entre outros. A especulação está na ordem do dia e, é neste ambiente que aparece maior burlão do século, Alves dos Reis. O Estado acumula uma dívida astronómica.

A este propósito lamenta Brandão. “Conheço, dez vinte casos cuja fortuna assenta numa infâmia. Conheço mil pobres com uma vida digna de quem ninguém faz caso. O rico explora o desgraçado, já não há nenhum homem que não se sinta afrontado e que no íntimo não deseje que isto desabe… Só falta um passo.

A bagunça republicana, sem encontrar uma fórmula estável de governação, prossegue ao longo dos anos vinte à média de um governo de cem em cem dias.
Quando uma nação já não consegue sair do beco político, há sempre um recurso: a sua força armada. Com o seu poder de compra reduzido para metade tende a avaliar a situação da mesma forma que vê a sua caserna e, assim, aconteceu o 28 de Maio, e Portugal teve por presidente um general, Carmona.

Falar dos anos 20 em Portugal, apenas pelos que aderem à ociosidade do tempo é como avaliar a solidez de um prédio pela fachada. Para lá dos hábitos festivos que constroem uma imagem singular da época, há uma multidão para a qual a vida pouco se altera. É uma imensa maioria que não frequenta os clubes nocturnos, não vê espectáculos, não veste à moda nem consome espumante.
Para esses, embora suportando sobre os ombros o tradicional fardo do atraso português, as transformações dos anos 20 pouco significam. A excepção é constituída por alguns programas de habitação social em Lisboa, mas a sua lentidão é tão grande, que no fim da década ainda não estavam prontos. O resto da construção civil, privada e próspera, dominada por empreiteiros pouco escrupulosos, onde o arquitecto dá lugar ao mestre de obras, vai desfigurando a cidade e, a má qualidade das construções levam a diversos desmoronamentos fazendo dezenas de vítimas mortais.
Sendo a capital o destino do fluxo migratório, daqueles que pouco mais resta do partir e, que não se querem aventurar no estrangeiro, calculados em mais de 100 mil, o alargamento dos bairros da lata na periferia, torna-se inevitável, com índices ofensivos de miséria. Crianças e idosos mendigam e vivem na rua. A pequena criminalidade também aumenta. São montadas “Cozinhas Económicas” refeitórios públicos, para matar a fome com um prato de sopa, aos que nada têm para comer. A indigência persiste, sem que nada seja feito para que regrida, só ocultá-la.

As autoridades estão mais empenhadas em disfarçar a miséria do que a combatê-la. Proíbem os pés descalços nas ruas, mas são aos milhares os que não têm dinheiro para comprara calçado. Para ajudar a criar a ilusão de um cosmopolitismo, proíbem cuspir nos eléctricos e na Baixa lisboeta os estendais voltados para a rua.

O fluxo migratório em direcção a Lisboa é o retrato da estagnação da província, onde o latifúndio explora desumanamente o trabalhador e o minifúndio ao norte passa fome.

As indústrias persistem na sua cultura artesanal, onde o patrão tem um papel paternalista. Começam a formar-se os primeiros pólos industriais, onde o trabalhador analfabeto, pouco mais é que um escravo. No mar, o pescador sem portos de abrigo, joga diariamente à cabra cega com a morte. Todos os anos a morte revê-se nos trajos pretos das viúvas.

As doenças são combatidas com medidas tão eficazes, como uma aspirina perante um cancro. Só a mortalidade infantil merece um pouco mais de atenção. Aparecem as primeiras maternidades, lactários e cresces.

9 Comments:

Blogger isabel mendes ferreira said...

lácteo de branco de cristal o texto.

rico.


para combater o esquecimento.




beijo.

9:37 da manhã  
Blogger Peter said...

Tenho seguido com muito interesse este teu percurso no Portugal republicano.

Mais do que o "caixote do lixo" em que o actual Presidente do Município transformou aos Domingos o Terreiro do Paço, com repercussões no trânsito lisboeta, é pena não te ser dado apreciar uma excelente exposição de fotos sobre a Implantação da República, colocada no lado direito (para quem está virado para o Tejo), junto às arcadas.

Abraço amigo.

2:45 da tarde  
Blogger A Sonhadora said...

Olá Augusto...ao fim de tanto tempo, aqui estou a agradeçer as passagens pelo meu canto...
Como sempre por aqui, artigos muito interessantes.
Deliciei-me a passear por este mar de informação.
Um abraço

12:49 da manhã  
Blogger Diogo said...

Esperança média de vida homens 35,8 anos. Esperança média de vida mulheres 40,1 anos.

Hoje passou-se para o dobro. Mas tudo é relativo. Dispomos hoje de uma tecnologia milhares de vezes mais avançada, e, no entanto, temos dois milhões de pobres.

10:01 da tarde  
Blogger contradicoes said...

Interessante o teu trabalho que envolve uma pesquisa aturada. No entanto embora se constate que houve uma significativa melhoria de condições de vida dos portugueses ele poderia ter sido ainda muito mais melhorada face a todos os recursos económico e financeiros que têm sido consumidos alguns dos quais em proveito dos próprios intervenientes nos serviços de saúde, com manifesto prejuízo do cidadão comum. Um abraço do Raul

11:32 da tarde  
Blogger isabel mendes ferreira said...

apenas para dizer...como muitos....mas olha é assim mesmo, apenas para dizer
obrigada.


_________________.


bjj.

5:10 da tarde  
Blogger Dona Betã said...

Tenho 68 anos e venho de uma terra natal em que a pobreza grassava atrozmente, pobreza essa a que assisti na porta ao lado da casa dos meus pais e que está sempre presente nas minhas mais longínquas recordações. Os teus textos são, para mim, pungentes. E o que mais me dói é que a pobreza a que assisti na minha juventude foi motivada pela mais torpe pobreza de espírito. E ainda hoje assim é!

Apetecia-me deixar aqui um insulto.

Um abraço e bom fim de semana

12:57 da manhã  
Blogger Isamar said...

Muito interessante este estudo socio-económico do século XX por décadas. Sempre com o rigor que te é característico.
Beijinhos

9:23 da tarde  
Blogger AJB - martelo said...

sabe Augusto, ainda me lembro de alguns subirem a escada do prédio não para pedirem uns centavos, mas para comerem uma malga de sopa, por isso...quando isso acontece estamos a falar da degradação humana.

10:02 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home