Falar da pobreza, parece estar na ordem do dia, ainda que poucas pessoas procurem conhecer afundo o fenómeno. A pobreza não é uma doença súbita, é uma patologia lenta que nos vai consumindo sem darmos por isso e, um dia, podemos acordamos doentes. Talvez pareça excessivo, mas vou procurar fazer uma análise da evolução portuguesa ao longo dos últimos 100 anos. Tenho 66 anos de idade, o que me coloca na qualidade de observador de, pelo menos, meio século. Convido todos os que me visitam a participarem, não como um debate, mas uma tribuna aberta a todas as opiniões. Vale a pena perder um bocadinho do nosso tempo a pensar no assunto, pois o que se mostra no horizonte, não é nenhum mar de rosas.
Para a elaboração dos meus textos, vou-me socorrer da obra Portugal Século XX de Joaquim Vieira de onde recolherei textos, dados estatísticos e fotografias.

Volta a viver-se nas furnas de Monsanto (Lisboa). Família aquem foi estruida a casa por uma intempérie (1947)
Década de 1940 a 1950
Os anos da guerra
Estatística referente a 1940
População 7.755.423 (homens 3.734.348 48,1% mulheres 4.021.074 51,9%) (menores de 20 anos 3.216.700 41,5% maiores de 60 anos 760.620 9,8%)
Mortalidade infantil (por mil partos) 126,09
Esperança média de vida homens 47,7 anos
Esperança média de vida mulheres 51,8 anos
População de Lisboa 694.389
População do Porto 258.548
Analfabetos 49%
Emigrantes oficiais (por mil habitantes) 1,7
Eleitores inscritos 813.558
Escolas primárias 7.768
Estudantes do ensino primário 587.747
Estudantes do ensino secundário 32.322
Estudantes universitários 8.692
Automóveis em circulação 39.146
«A guerra não podia deixar de ter tido, como efectivamente teve, um terrível efeito desorientador na incipiente organização corporativa»
Marcelo Caetano
Se no primeiro decénio da ditadura (1927 – 1936) cada português consumia uma média diária de 2524 calorias, no segundo (1937 -1947) o valor desceu para 2403, quebra amortecida pelo recurso ao vinho (195 calorias diárias no segundo período contra 154 no primeiro).
Apesar das limitações da guerra aos abastecimentos, há bens alimentares, mas não ao alcance de todos, gera-se riqueza, mas não distribuída pela maioria. Os géneros obtêm-se no mercado negro, por bom dinheiro ou influência e, as receitas dos negócios de guerra entram nos cofres do Estado, nas contas das empresas ou nos bolsos dos comerciantes.
Em 1942 o panorama é crítico, com as importações muito reduzidas. A fome atinge as famílias operárias das grandes concentrações industriais e sobretudo os assalariados rurais.
Quem não pode recorrer ao mercado negro, tem de enfrentar gigantescas bichas para a obtenção das senhas de racionamento. A lista dos produtos racionados é enorme: o açúcar, o arroz, o bacalhau, as massas, o sabão, a manteiga, o café, o cacau, o azeite, os óleos alimentares, o grão, os cereais e as farinhas, assim como o pão 8reduzido o branco para 180 gramas por dia e por pessoa ou, em alternativa, o escuro a 290 gramas). Também as batatas serão condicionadas a meio quilo por semana e por pessoa. Carne nem cheiro para pobre, aves só para ricos.
Os preços sobem e Salazar congela os salários, impedindo que acompanhem a inflação.
«seria um perigo, um erro, um crime contra o equilíbrio económico, a solidez financeira e a paz social abandonar a disciplina a que nos temos providencialmente sujeito» Salazar
No início da década o salário agrícola vale em média um quinto de há vinte anos. O Instituto Nacional de Estatística constata que toda a refeição se baseia em broa, «com umas três ou quatro sardinhas salgadas, mais ou menos batatas, duas tigelas de caldo com legumes secos e hortaliça.» O inquérito feito numa povoação alentejana, previne que «a classe dos jornaleiros temporários encontra-se em estado de subalimentação, com o regime insuficiente, tanto em quantidade como em qualidade». «Se o trabalho falta e o merceeiro não fia, apenas um dia ou outro mitigará a fome com um prato dado por caridade», conclui o inquérito.
A repressão não consegue impedir alguns aumentos salariais que rompem a política de contenção, acelerando a espiral inflacionária que acaba sempre por prejudicar quem depende do rendimento do trabalho (entre 1942 2 1946, os salários descerão em média um décimo do seu valor real em 1941).
A penúria continua no imediato pós-guerra, mantendo-se o racionamento e o Ministério do Interior lança o apelo do Socorro de Inverno, sob o lema «Todos os que podem a favor de todos os que precisam». O Estado mendiga, mas o alheamento é confrangedoramente generalizado.
Mas nem tudo é miséria, pelo menos para alguns. É a vaga dos novos-ricos desfazendo fortunas ao ritmo que as ganham. É a época do “ouro negro” o volfrâmio, que leva milhares de famílias camponesas, aldeias inteiras, a trocar a enxada pela picareta, o sol pelo buraco, onde como toupeiras, tentam superar a sua miséria. Também não têm mãos a medir os industriais que fornecem sobretudo os alemães, preferidos por pagarem com divisas ou ouro judeu e não a crédito como acontecia com os aliados.
A Mitra de Lisboa é a instituição onde são internadas as crianças pedintes de Lisboa, mata-lhes a fome, mas não elimina as causas da miséria. A miséria, sobretudo nas cidades, deve ter atingido o seu zénite nesta década. Mulheres, crianças e cães disputam a comida nas lixeiras, ou vasculha restos de carvão dos caminhos-de-ferro, para trocar por comida. A sociedade portuguesa mais desfavorecida vive momentos de grande desespero.

Crianças formadas para almoçar na Mitra de Lisboa, que mais parece um campo de concentração nazi.
Mas futilidade parece ser o nosso apanágio. Com a guerra são milhares os fugitivos que passam por Lisboa e com eles novas maneiras de estar na vida. Os homens passam o dia a desfilar pelos cafés de Lisboa, para verem as pernas das fugitivas, as mulheres a invejarem as meias de seda. As estrangeiras, desinibidas mostram-se em malho na praia, fumam, cruzam as pernas e mostram decotes generosos. Eles não usam chapéu e mostram o peito nu na praia. Enquanto uns choram a miséria, para outros, o swing passa a ser a grande moda nos bailes. Imitar passou a ser o paradigma desta Lisboa mesquinha.
Só em 1947 foi levantado o racionamento, quando o então o Ministro da Economia Daniel Barbosa, utilisou o ouro e as divisas acumuladas durante a guerra, para uma compra maciça de géneros alimentares.