domingo, junho 26, 2005

Lembranças XIV


Os feridos antes de virem para Lisboa, sofriam uma primeira intervenção médica nos hospitais de campanha, onde eram estabilizados e postos em condições de serem transferidos para os nossos serviços. Mas como a precariedade nesses hospitais era grande, muitas vezes, segundo diziam, chegavam num estado lastimoso.
Primeiro fui visitar a minha antiga enfermaria. Com a mão na maçaneta, respirei fundo, abri a porta com decisão e entrei, dando os bons dias e passando rapidamente um olhar pelas camas recém ocupadas pelos novos feridos.
A primeira impressão foi de alívio, pois não via ninguém com aparência de muita gravidade. Em seguida dei as boas vindas aos recém chegados, procurando saber se tinham feito boa viagem, mas a resposta não se fez ouvir, pois estavam a dormir, a única resposta que tive foi do doente da cama 1, o tal que não queria que eu lhe desse a injecção. O que está pior é o da cama 4.
Aproximei-me então da cama 4 onde o ocupante estava deitado de lado, virado para a parede a dormir e tinha a cabeça tapada com o lençol, por causa da claridade, pensei eu.
Ao levantar o lençol, com jeito para o não acordar, reparei que tinha toda a cabeça ligada olhos e tudo, somente uma abertura no sitio da boca. Como estava a dormir não o quis incomodar.
Na outra enfermaria já o aspecto era diferente, haviam quatro doentes pelo menos que estavam muito mal tratados. Um parecia que tinha mudado de cor, tendo a pele um tom azulado escuro, tal era a quantidade de estilhaços que tinha no corpo.
Outro vinha com as costelas traccionadas com um pinça, da qual metade ficava fora do corpo, onde estava pendurado um peso para fazer a tracção. Outro ainda tinha o couto do braço amputado todo ligado e as duas pernas engessadas.
Um quarto vinha com uma ferida enorme nas costas , uns dez centímetros acima da região lombar, provocada por uma bala, uma bala de destino cruel, que o tinha deixado paraplégico.
Depois desta visita, fui ao gabinete do sargento buscar os boletins médicos e o carro de tratamentos da enfermaria e comei a trabalhar. Nesse dia fui almoçar com o Galrinho e o Vítor que quis ser solidário connosco às 5 da Tarde.
Dos doentes novos, o primeiro que fui tratar foi do cama 4, o que tinha a cabeça toda ligada. O boletim médico não trazia qualquer prescrição medicamentosa, para além da sua história clínica, que não conseguia ler uma letra, mas cuja extensão me fazia adivinhar que de algo complicado se tratava. Na dúvida fui chamar o sargento, mais habituado aos hieróglifos dos médicos, que após ter lido o relatório médico disse. Este tem de ser visto pelo Dr. Paredes, mas para já muda-lhe a ligadura que está muito suja e faz-lhe um penso novo, e saiu sem dizer mais nada. O Dr. Paredes era o cirurgião chefe da medicina plástica.
Acordei-o, pedi-lhe para que se sentasse na cama, e comecei a desenrolar a ligadura com todo o cuidado. Quando acabei de remover a ligadura, verifiquei que toda a cabeça estava envolvida numa grande compressa, também ela toda suja da superação dos ferimentos. Agarrei no penso cautelosamente para me certificar que não estava colado ao rosto, e verificando que não, tirei-o.
Ainda hoje ao escrever estas linhas me arrepio, ao relembrar a visão que tive. Metade da face, esquerda ou direita não me recordo, tinha desaparecido, tendo ficado à mostra a metade da caveira, tal qual nós conhecemos. Não tinha nariz nem olhos nem lábios, vendo-se perfeitamente os dentes implantados nos maxilares. O que restava da cara era menos de 50%.
Recordo que a primeira sensação que tive foi um susto tão grande que ao endireitar-me dei um empurrão do carro dos medicamentos que andou mais de um metro. Que visão aterradora, visto do lado que não tinha carne, parecia um vivo com a cabeça de caveira.
Toda a enfermaria soltou um uníssono ah, havendo mesmo um que se descontrolou e começou a chorar. Os impropérios dos outros não se fizeram esperar, insultando tanto o inimigo, como os oficiais, como tudo o que achavam que tinha culpa. A excitação na enfermaria era enorme.
Apercebi-me, pelos movimentos que fazia com a cabeça, de que ele estava a pressentir que se passava qualquer coisa. Fiz sinal para se calarem, agarrei-lhe nas mãos com força e mandei chamar novamente o sargento.
Quando entrou e viu o estado em que se encontrava o pobre do rapaz, abanou a cabeça e disse-me para não fazer nada, que ia à procura do Dr. Paredes. Quando, pouco depois, o médico chegou e o examinou, após ler o relatório médico, ordenou-me que tapasse a cabeça e o rosto com gaze e o leva-se para o bloco operatório, pois seria ele mesmo a fazer o tratamento.
Tinha 22 anos quando o rebentamento de uma mina, perto de Farim, na Guné, lhe arrancou a carne de metade da face, o nariz e os olhos e todas as ilusões da sua juventude. O resto do corpo não tinha uma beliscadura.
Como o seu caso necessitava de cuidados especiais, passou a fazer todos os tratamentos no bloco operatório, a enfermaria era só para dormir. Os colegas de infortúnio, argumentavam que ele no meio daquela desgraça ainda tinha tido sorte em ficar cego, pois o seu sofrimento ao ver-se naquele estado devia ser maior. Isto pode parecer cruel, mas não o era, era o subjectivar daquela situação horrorosa.
Mais tarde foi submetido a cirurgias plásticas para reconstrução da face, mas à nona intervenção, o coração não aguentou e morreu.

Caros amigos que me lêem, este texto não é ficção bem como todos os outros do Lembranças, são as minhas memórias do tempo em que fui enfermeiro militar, no Hospital Militar de Lisboa, durante a Guerra Colonial. Ao relembrar faço duas coisas, homenagear todos os que viram a sua juventude trucidada e ficaram esquecidos, e lembrar aos jovens de hoje, quanto afortunados são por não terem de passar por uma guerra tão dramática como foi a Guerra Colonial.

14 Comments:

Blogger BlueShell said...

Chamaste e eu vim...

Que situação horrível a que descreves.Talvez a morte lha tenha poupado muito sofrimento, não sei!

e outros, tantos oa que ficaram feridos, os que pereceram...Muito triste, mesmo! Mas uma bela homenagem, de facto, a todos quantos lutaram nessa guerra!

E deixa que te diga...moço bonito tu eras em 63, heehhe...

Beijinho,
BShell

11:28 da tarde  
Blogger Ivone Medeiros said...

Faz pensar...

5:30 da tarde  
Blogger Unknown said...

uqe grande escrita, que grande relato, eu estive lá, conseguiste transportar-me até lá... e por momentos estive deitado numa marquesa...

9:47 da tarde  
Blogger Margarida Atheling said...

Se há um erro histórico que reconheço no nosso passado foi o facto de termos ido para África!
Digam-me o que me disserem! Para mim foi um erro!

Mas já que cometemos esse erro ao menos que nenhum português tivesse perdido a sua vida por essa terra.
Morreria sem pestanejar por este país ou pela Escócia, mas que não me pedissem que fosse perder a vida a África!

Aos que lá estiveram, ao serviço de Portugal, a dívida do país é impagável!

Obrigada!

4:38 da tarde  
Blogger ABA said...

Caro Augusto:
A originalidade de ser o pai lindo da trinta.. não é exclusivo!
Feita a introdução..
o post é brilhante no relato do drama e sofrimento humano, mas não devemos esquecer que, além do sofrimento físico, vieram muitos rapazes com sequelas quem duas vidas saram!
Acho que preferiria vir da guerra sem um braço, a viver com fantasmas até ao fim dos dias!
Um abraço..
Ó jeitoso! :)

9:35 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Fico sem palavras, Augusto. É bom recordar a história, para que permaneça nas nossas memórias, contada por pessoas como tu que a viveram..e que a sabem transmitir, em toda a sua plenitude.

3:29 da manhã  
Blogger Unknown said...

Olá Agostinho, cá continuo a ler as tuas cró´nicas de guerra, sei que nos primeiros tempos sofreram muito, mas como em todas as guerras, de um e de outro lado sofrem, mas fique a honra de defender a Pátria não a dor porque para lá foram, nesse tempo Portugal era um grande país hoje é um cantinho mal conhecido, honro todos os que defenderam a Pátria a sua nobreza de sangue Lusitano, doí muito saber o que fez a tropa ao fim do 25 de Abril aos brancos que viviam, porque foi desumano eu estava lá e vi.Nekm sabes a revolta, nós de um momento para o outro viramos um povo sem Pátria sem ter quem nos defendesse.Lamento os soldados que morreram, em nossa defesa em defesa dos interesses do meu país, sinto revolta porque não foi feita justiça aos bravos guerreiros, pois no fim os que lá estavamos fomos abandonados á nossa sorte.
Um beijo para ti e se eu contar um dia as minhas memórias sobre os Brancos em Africa depois do 25 de Afril, é uma desonra patriotica.

11:05 da manhã  
Blogger saltapocinhas said...

Essas e outras crónicas de guerra deviam estar inscritas em letras garrafais em locais que toda a gente pudesse ver! Há jovens que não dão valor à liberdade de que desfrutam porque nunca ninguém lhes contou essas e outras histórias como essas!

5:28 da tarde  
Blogger Unknown said...

Mais um pedaço da nossa história...
Um abraço

10:25 da tarde  
Blogger Andy More said...

Em primeiro lugar, boa música, boa por variadíssimas razões, só me trás boas recordações. Segundo, só faltava mesmo este blog, para passar a conhecer a família quase toda… Agora esta visita inesperada foi só porque estou a fazer uma visita pelos blogs que vão ao jantar de aniversário do Fraternidades. Acho que já é uma boa razão.…

Um abraço!
Friedrich

Antes aqui - http://babushka.blogs.sapo.pt/

2:53 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

páro aqui..ouvindo a música e deixando mais um beijo de boa noite, Augusto*

4:29 da manhã  
Blogger oasis dossonhos said...

Um grande abraço para ti. Infelizmente não vamos poder conhecermo-nos no jantar do "Fraternidade" porque não posso ir.
Mas há-de haver um dia.
Bom fim de semana.
Luís

6:04 da tarde  
Blogger André Parente said...

Chocante. Um abraço

12:04 da manhã  
Blogger perplexo said...

Embora doendo, é bom não esquecer!

1:54 da manhã  

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