sexta-feira, julho 07, 2006

A metamorfose

No primeiro dia reconheceu que ao não permitir a liberdade de expressão, quer escrita quer falada, não consentindo com isso qualquer tipo de contestação à sua actuação, especialmente da parte de alguma elite intelectual, ela incorria numa impopularidade perante a sociedade, que pela indução intelectual aspirava à Liberdade, não sabendo muito bem, em muitos dos casos, o que isso significava.
Repensou a sua actuação e chegou à conclusão cientifica de que a diferença entre o proibir a contestação ou não lhe dar ouvidos ia dar na mesma coisa, com a vantagem de lhe ser reconhecido o mérito de conceder a liberdade de contestar, condição que lhe parecia suficiente para satisfazer as massas.
E no final do dia, permitiu a liberdade de expressão.

No segundo dia olhou para as prisões e para a polícia política, os suas seus instrumentos de repressão, que a tornava tão odiada, mas se no dia anterior tinha permitido a liberdade de expressão e contestação ao desbarato, estes instrumentos já não faziam mais do que dar despesa sem qualquer utilização útil.
Antes do final do dia, fechou as prisões e despediu a polícia. Mas como é bom andar sempre a par das novidades, autorizou as escutas telefónicas indiscriminadamente.

No terceiro dia os fumos da poluição trouxeram-lhe à memória o patronato, implicitamente lembrou-se como defendia e bem os seus interesses, os quais contemplavam a exploração da mão de obra, parcos direitos laborais e muito especialmente o não direito à greve. O pacto social vigente era de todos quietos e calados para receberem algumas migalhas, porque o bolo ficava noutras mesas. Por tudo isto a sua imagem era constantemente vilipendiada pelo descontentamento e contestação da classe laboral, que ansiava pelo alvitrado direito à greve.
Pensou, pensou, e concluiu que recusar o direito à greve tinha o mesmo efeito prático que o dar, caso fossem introduzido algum reforço legislativo neoliberal. Todos ficariam contentes, uns porque tinham o direito à greve, os outros porque viam nesse reforço legislativo a possibilidade de implementar a precariedade no emprego, o despedimento arbitrário e bloquearem os aumentos salariais.
Nem esperou pelo fim do dia, contente por agradar a todos, a meio da tarde autorizou a direito à greve e fez publicar a legislação laboral de cariz neoliberal.

No quarto dia foi despertada pela gritaria que vinha de um campo de futebol que ficava perto, e falando alto disse: “Ora aí está, é preso por ter cão e é preso por não ter”.
Recriminam-me os intelectuais de dopar o povo com o futebol e com a religião para que não pensem noutras coisas, são o ópio do povo dizem eles. Mas se faço a vontade a estes, os outros que estão viciados, esfolam-me vivo, pois já não podem passar sem eles.
Pensou, analisou e concluiu que para uma decisão ter êxito, o fundamental é sempre agradar à maioria, consegue-se que esqueçam o resto e nos aplaudam pelo que decidimos.
E no final do dia ordenou a construção de muitos estádios de futebol, mesmo sem ter dinheiro para o fazer, com a consolação de ficar empenhada por uma boa causa, e apelou ao patriotismo futebolístico. Quanto à religião concedeu à Igreja o direito para deliberar sobre o cardápio dos pecados.

No quinto dia de manhã, quando desfolhava nostalgicamente o livro da “pirata assada” da sua infância, amargamente lembrou-se das injustas acusações que lhe faziam de não educar convenientemente o povo.
Ela que tinha semeado tantas escolas primárias por esse país fora, convencida de que saber fazer o nome e que a soma de dois mais dois era igual a quatro era a cultura base indispensável, via e ouvia os ingratos intelectuais acusarem-na de não dar cultura ao povo, só o permitindo a um pequeno grupo de privilegiados.
Pensou, pensou, e quando já estava a ficar desanimada por não encontrar solução, gritou eureka, quando, num repente, lhe surgiu a chave da solução. Se é cultura que querem, a que faz falta mais aquela que para nada serve, então aqui vai.
No fim do dia liberalizou a abertura das faculdades privadas, com miríades de cursos de que ninguém ainda tinha ouvido falar nem sabiam para que serviam.

No sexto dia acordou constipada, tinha o nariz entupido e alguma febre. Chamou o médico da Caixa a casa. Talvez a terapia não fosse a melhor, mas era barata e podia ser ministrada a todos. Mas até nisso era contestada e acusada de não dar à população os melhores cuidados de saúde, em especial nos hospitalares.
Depois de pensar e repensar como poderia solucionar o problema sem gastar mais dinheiro, chegou à conclusão de que se os hospitais não estivessem sob a responsabilidade do Estado, já ninguém podia reclamar a má qualidade dos serviços.
No fim do dia decretou a privatização dos hospitais, deixando aos privados a responsabilidade da qualidade dos serviços médicos e os lucros que só eram prejuízos para o Estado antes de privatizar.

No sétimo dia descansou, cansada mas feliz pelo que tinha feito, e verificando que o seu nome já não fazia sentido, mudou-o.

19 Comments:

Blogger Maria Carvalho said...

Acontece. Beijos.

2:09 da tarde  
Blogger Maria said...

Duas moedas. Uma mesma face?
Beijos.

8:51 da tarde  
Blogger Em busca da Paz de Espírito said...

Sublime! :-))

10:49 da manhã  
Blogger Rosalina Simão Nunes said...

pois.

uma leitura possível ou provável.

e o curioso é que ontem comecei a ler "A Metamorfose" de Kant.

boa semana.

12:44 da tarde  
Blogger Leonor said...

ola augusto.
ri-me com o teu texto. humorado mas de escrita difici. dificil.rss

mas lendo os teus comentarios, se me permites a ousadia de meter-me com os teus visitantes...no bom sentido, claro: a metamorfose conheço de kafka e foi um livro que mudou a minha visao sobre as baratas, coitadinhas, rsss

de kant so conheço a fundamentaçao da metafisica dos costumes e acredito, creio mesmo que foi a unica coisa que ele escreveu. primeiro um volume e depois outro com um espaço de vinte anos entre os dois livros.
corrige-me se estou enganada.

abraço da leonoreta

9:16 da tarde  
Blogger contradicoes said...

Este retrato está duma subtileza capaz de fazer inveja ao melhor fotógrafo critico. Com um abraço do Raul

10:47 da tarde  
Blogger hfm said...

Gosto de humor e quando este se alia à originalidade geralmente dá um post como este - óptimo.

6:42 da tarde  
Blogger Fátima Santos said...

oh! homem que texto mais azedo e no entanto lê-se como se estivessemos passando as mãos por veludo. É que não dás uma aberta..."ela" morre e "a gente" fica por aqui a tentar não bater ca mão no peito por não termos "visto antes"...

10:39 da tarde  
Blogger Peter said...

Augusto, desculpa, é só para te agradecer o teu comentário sobre o meu texto.
Estou a ser corrido pelo dono do "cyber café", que o quer fechar. Assim, amanhã voltarei para ler e comentar o teu.

Abraço

11:43 da tarde  
Blogger A Sonhadora said...

Olá Augusto, bom dia....
Desculpa deste silêncio, mas não tenho andado mto bem...no entanto tenho tido o cuidado de ver todos os comentários de amizade e hoje resolvi responder a todos...
Espero que saibas quem sou....eheheh
já cá tens vindo,e já nos temos encontrado, por isso estou a responder desta vez por aqui...
Um bzummmzummm grande da abelhinha

12:26 da tarde  
Blogger A Sonhadora said...

Oi Augusto, cê num se lembra de mim não????
dá lá uma lembradura pela tua cabeça...e vê onde é que provaste do meu mel...
anda lá faz um pequeno esforço...
Um bzummmzummm grande

3:40 da tarde  
Blogger Alberto Oliveira said...

É assim; a democracia "tem dias". Cá pela nossa banda, não são dos melhores, diria até que temos a democracia em saldos.
Não quero recorrer ao chavão batido do "enquanto não houver mlelhor sistema a democracia... ", mas a pergunta que sempre se impõe é: porque raios é que aqui, é tão má; pior que noutros sítios?! E claro que todas as questões têm resposta...

Abraço.

6:23 da tarde  
Blogger isabel mendes ferreira said...

um abraço. com sentimento....que estendo à Rapariga....:)

8:01 da tarde  
Blogger Diogo said...

Um texto excelente.

A metamorfose é da ditadura para a democracia, desta para a oligarquia e desta para o nada?

9:09 da tarde  
Blogger A Sonhadora said...

Ok amigo....além de voar por esses campos.....ainda vou sonhando...tás lembrado?!..eheheh
beijinho de euzinha

10:08 da tarde  
Blogger Black Angel said...

...como se fossem os sete dias da criação, só comparável com deus, a ditadura dos mais fortes. a igreja tb muda os seus dogmas conforme mais lhes (a eles) convém...
abraço

2:05 da tarde  
Blogger Black Angel said...

são as metamorfoses...

2:07 da tarde  
Blogger A Sonhadora said...

Augusto acertaste na mouche...eheheh
Bom fim de semana....e beijão da sonhadora....abelhita....eheheh

3:12 da tarde  
Blogger Geosapiens said...

...as metamorfoses...não são as republicas aristocráticas representativas que actualmente temos...mas as opções que essas aristocracias tomam com a anuencia por omissão ou comodismo de quem é governado por elas...um abraço...

6:09 da manhã  

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