Lembranças XVI
Na hora das visitas estávamos sempre presentes no serviço, para prestar qualquer informação sobre o estado dos doentes aos seus familiares. Nessa tarde encontrávamos na gabinete médico em amena cavaqueira, ou melhor, ouvindo as histórias de África que o sargento chefe contava, pois no dia das visitas não arriscava a sair mais cedo, não fosse haver alguma visita indesejável.
O Victor e o sargento estavam sentados nas suas secretárias, eu numa cadeira e o Galrinho de pé encostado a um armário. Estávamos tão entusiasmados a ouvir o sargento, que não nos apercebemos de que alguém, em silêncio, estava à porta olhando para nós, na esperança de ser visto.
Como tal não acontecia, anunciou-se com um tímido boa tarde. Olhámos para a porta, e vimos uma bonita rapariga com um ar provinciano que o cabelo apanhado atrás, em forma de carrapito, lhe dava. O Victor com um sorriso retribui-lhe o cumprimento, perguntando o que desejava.
Queria saber qual dos senhores é o enfermeiro Galrinho, respondeu com a voz um pouco trémula, denotando pouco à vontade na pergunta. Após um curto silêncio, ouviu-se o vozeirão do procurado, sou eu, deseja alguma coisa?
A pergunta não teve resposta, mas a rapariga entrou no gabinete, e com um passo decisivo, quase em corrida, aproximou-se do Galrinho, olhou-o de frente por um instante e em seguida abraçou-o e deu-lhe um demorado beijo da face, perante nas nossas caras de parvos incrédulos.
Não menos surpreso ficou o Galrinho que só não recuou porque tinha o armário atrás dele. Não articulou uma palavra, mas os seus olhos reflectiam a pergunta, a que devo tamanho beijo?
Afastando-se e desprendendo os braços dele, com a voz de quem tinha conseguido algo muito querido, explicou a sua atitude. Sou a noiva do José Miguel, quero muito agradecer-lhe as lindas cartas que me escreveu. Fez-se luz, e o Victor num repente exclamou, é a miúda do Zé Migalhas, ela olhou para ele e com um aceno de cabeça e um sorriso confirmou.
O Galrinho recomposto da situação, e com a lata que lhe era habitual, respondeu-lhe. Se eu soubesse que as cartas eram dirigidas a uma menina tão bonita, ter-lhe ia mandado rosas com as cartas. Ela roborizou um pouco e baixou a cabeça. Ele apresentou-nos e em seguida deu-lhe o braço, dizendo, vou levá-la à enfermaria.
Zé Migalhas era o nome porque era conhecido o José Miguel, aquém nos períodos de maior infortúnio e desânimo, o Galrinho escrevera por ele e de cumplicidade com toda a enfermaria cartas à namorada. O envolvimento dos outros doentes, que ao princípio era feito com algumas grosserias, acabou por se tornar no desejo daquilo que cada um gostaria de dizer à sua própria namorada, tendo como resultado algumas belas cartas de amor.
A primeira vez que vi o Zé Migalhas tinha acabado de chegar da Alemanha, onde havia sido submetido a uma operação à coluna vertebral. Era frequente os feridos paraplégicos com alguma probabilidade de recuperação irem à Alemanha para serem submetidos a uma intervenção cirúrgica na coluna.
Quando regressavam e com sucesso na intervenção, tínhamos de tentar a sua recuperação. Não é nada fácil recuperar paraplégicos, especialmente quando se encontram de tal modo deprimidos, e se abandonam à resignação do seu estado. Psicologicamente, a sua comparticipação na recuperação, só é possível quando conseguem uma primeira vitória, por muito pequena que seja.
O Galrinho fazia os possíveis e os impossíveis, mas nada resultava, pois o Zé além de não colaborar, estava resignado ao seu estado, passando os exercícios a chorar e a insultar o Galrinho por este o forçar a fazê-los. Esta era a cena diária do desespero de quem quer ajudar, sabendo das possibilidades do êxito, e de quem não quer ser ajudado, desiludido, e resignado, não acreditando na recuperação, que o resto dos doentes da enfermaria assistiam.
Um dia, quando o Galrinho ia começar os exercícios, um grupo de doentes aproximou-se da cama do Zé e pediu autorização para serem eles a tentar. Como perdido por cem perdido por mil, o Galrinho autorizou.
Os exercícios foram abandonados para darem origem a uma terapia de choque, de choque porque foi mesmo chocante. O Zé estava paraplégico da cintura para baixo, sem conseguir fazer qualquer movimento com as pernas ou os pés.
Os camaradas de enfermaria, colocaram então no chão uma toalha onde puseram o prato da comida, o pão e o vinho, como de uma mesa se tratasse. Encostado à cama fizeram um tapete com as almofadas e disseram-lhe: queres comer? Vai comer ali, apontando o lugar onde tinham improvisado a mesa no chão, em seguida voltaram-lhe as costas e foram-se embora.
O Zé depois de ter verificado, que a sua gritaria ao fim de dois dias não tinha sortido efeito, cheio de fome, rebolou para cima das almofadas e arrastou-se muito penosamente até ao prato. Ninguém da enfermaria o ajudava, só quando acabava de comer é que o voltavam a por na cama.
Descrever todo este “cruel” processo seria longo e fastidioso, mas culminou com a saída do Zé para ir gozar uma licença de convalescença, pelo seu próprio pé, apoiado numa bengala e de braço dado com a sua noiva.
Foi uma saída comovente, todos os colegas da enfermaria que podiam, acompanharam-no até ao portão do hospital. Se era uma grande vitória do Zé não o era menos da camaradagem.
O Victor e o sargento estavam sentados nas suas secretárias, eu numa cadeira e o Galrinho de pé encostado a um armário. Estávamos tão entusiasmados a ouvir o sargento, que não nos apercebemos de que alguém, em silêncio, estava à porta olhando para nós, na esperança de ser visto.
Como tal não acontecia, anunciou-se com um tímido boa tarde. Olhámos para a porta, e vimos uma bonita rapariga com um ar provinciano que o cabelo apanhado atrás, em forma de carrapito, lhe dava. O Victor com um sorriso retribui-lhe o cumprimento, perguntando o que desejava.
Queria saber qual dos senhores é o enfermeiro Galrinho, respondeu com a voz um pouco trémula, denotando pouco à vontade na pergunta. Após um curto silêncio, ouviu-se o vozeirão do procurado, sou eu, deseja alguma coisa?
A pergunta não teve resposta, mas a rapariga entrou no gabinete, e com um passo decisivo, quase em corrida, aproximou-se do Galrinho, olhou-o de frente por um instante e em seguida abraçou-o e deu-lhe um demorado beijo da face, perante nas nossas caras de parvos incrédulos.
Não menos surpreso ficou o Galrinho que só não recuou porque tinha o armário atrás dele. Não articulou uma palavra, mas os seus olhos reflectiam a pergunta, a que devo tamanho beijo?
Afastando-se e desprendendo os braços dele, com a voz de quem tinha conseguido algo muito querido, explicou a sua atitude. Sou a noiva do José Miguel, quero muito agradecer-lhe as lindas cartas que me escreveu. Fez-se luz, e o Victor num repente exclamou, é a miúda do Zé Migalhas, ela olhou para ele e com um aceno de cabeça e um sorriso confirmou.
O Galrinho recomposto da situação, e com a lata que lhe era habitual, respondeu-lhe. Se eu soubesse que as cartas eram dirigidas a uma menina tão bonita, ter-lhe ia mandado rosas com as cartas. Ela roborizou um pouco e baixou a cabeça. Ele apresentou-nos e em seguida deu-lhe o braço, dizendo, vou levá-la à enfermaria.
Zé Migalhas era o nome porque era conhecido o José Miguel, aquém nos períodos de maior infortúnio e desânimo, o Galrinho escrevera por ele e de cumplicidade com toda a enfermaria cartas à namorada. O envolvimento dos outros doentes, que ao princípio era feito com algumas grosserias, acabou por se tornar no desejo daquilo que cada um gostaria de dizer à sua própria namorada, tendo como resultado algumas belas cartas de amor.
A primeira vez que vi o Zé Migalhas tinha acabado de chegar da Alemanha, onde havia sido submetido a uma operação à coluna vertebral. Era frequente os feridos paraplégicos com alguma probabilidade de recuperação irem à Alemanha para serem submetidos a uma intervenção cirúrgica na coluna.
Quando regressavam e com sucesso na intervenção, tínhamos de tentar a sua recuperação. Não é nada fácil recuperar paraplégicos, especialmente quando se encontram de tal modo deprimidos, e se abandonam à resignação do seu estado. Psicologicamente, a sua comparticipação na recuperação, só é possível quando conseguem uma primeira vitória, por muito pequena que seja.
O Galrinho fazia os possíveis e os impossíveis, mas nada resultava, pois o Zé além de não colaborar, estava resignado ao seu estado, passando os exercícios a chorar e a insultar o Galrinho por este o forçar a fazê-los. Esta era a cena diária do desespero de quem quer ajudar, sabendo das possibilidades do êxito, e de quem não quer ser ajudado, desiludido, e resignado, não acreditando na recuperação, que o resto dos doentes da enfermaria assistiam.
Um dia, quando o Galrinho ia começar os exercícios, um grupo de doentes aproximou-se da cama do Zé e pediu autorização para serem eles a tentar. Como perdido por cem perdido por mil, o Galrinho autorizou.
Os exercícios foram abandonados para darem origem a uma terapia de choque, de choque porque foi mesmo chocante. O Zé estava paraplégico da cintura para baixo, sem conseguir fazer qualquer movimento com as pernas ou os pés.
Os camaradas de enfermaria, colocaram então no chão uma toalha onde puseram o prato da comida, o pão e o vinho, como de uma mesa se tratasse. Encostado à cama fizeram um tapete com as almofadas e disseram-lhe: queres comer? Vai comer ali, apontando o lugar onde tinham improvisado a mesa no chão, em seguida voltaram-lhe as costas e foram-se embora.
O Zé depois de ter verificado, que a sua gritaria ao fim de dois dias não tinha sortido efeito, cheio de fome, rebolou para cima das almofadas e arrastou-se muito penosamente até ao prato. Ninguém da enfermaria o ajudava, só quando acabava de comer é que o voltavam a por na cama.
Descrever todo este “cruel” processo seria longo e fastidioso, mas culminou com a saída do Zé para ir gozar uma licença de convalescença, pelo seu próprio pé, apoiado numa bengala e de braço dado com a sua noiva.
Foi uma saída comovente, todos os colegas da enfermaria que podiam, acompanharam-no até ao portão do hospital. Se era uma grande vitória do Zé não o era menos da camaradagem.
11 Comments:
Que história tão bonita! Pena que nem sempre acabem assim todas as histórias que habitam a tua memória nessa tua pasagem pela 'guerra'...
Bom feriado.
Um abraço
Fiquei a chorar...é formidável a tua história! Muitos beijos
Deixemo-nos de lamechices e corramos a agitar as massas: os agnolottis, os cannelonis, as lasanhas e os ravioles.
Estou a brincar.
Um abraço
Gostei de ler.
Augusto Amigo, hoje vim para convidar-te para a festa de 1º aniversário do Eu Sei Que Vou Te Amar... És peça muito importante neste um ano de história, afinal é tambem por ti que ele existe!
Muitos beijos, flores e sorrisos para ti!
quero agradecer vivamente os bons comentarios que fazes no meu sitio enriquecendo-o com o teu saber.
quero dizer-te tambem que gosto da tua escrita que fala sempre de solidariedade.
abraço da leonor
os xuxas arderam e empalhaçaram-se...ehehe
Estas histórias sabem sempre a pouco! São tão boas que queremos sempre mais. Tudo de bom.
Como cheguei aqui? - Já nem sei. Importa, realmente? - Cheguei. E que belo e comovente texto a saudar-me!!
Como cheguei aqui? - Já nem sei. Mas agora que aprendi o caminho... volto sempre: com certeza!
Deixo o meu abraço fraterno.
Quem dera que ouvesse muitas pessoas como as que aqui relatas, Beijinhos e adorei ler, como sempre.
Augusto amigo! Sei que amizade nao se agradece... porque ela simplesmente acontece entre pessoas que se afinizam de alguma forma... e fico feliz por tua amizade... tanto como fiquei feliz que tivesse ido ao meu 1º aniversário... Vim agradecer-te tua visita e deixar-te muitos beijos e sorrisos!
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