Lembranças XI
O meu primeiro dia de trabalho no hospital, começou com um desconforto muito grande. O medo de falhar. Inseguro dos conhecimentos adquiridos no curso, tinha de os pôr agora em prática.
A enfermaria, completamente cheia, tinha onze camas. Cinco de cada lado e uma na parede do fundo entre duas janelas. Tinha muito bom aspecto, pois o hospital não era muito antigo, e a degradação ainda não se fazia sentir. O asseio era prioritário.
Munido do carro de tratamentos, com compressas, instrumentos diversos, seringas, remédios etc. entrei na enfermaria sob o olhar desconfiado dos doentes. Se o meu à vontade já não era muito, com estes olhares perdeu-se por completo. Depois de uns bons dias, meio engasgados, dirigi-me à cama nº 1 para iniciar o trabalho.
O primeiro doente não precisava nada de especial, além de uma injecção de antibiótico, receitada pelo médico, pois tinha sido operado a uma fractura múltipla com solução de continuidade na perna direita havia dois dias. Como não podia mover-se, e estava de barriga para o ar, não podia dar a injecção na nádega, a espetadela deveria ser dada na coxa que não tinha sido operada.
Quando ia a espetar a agulha, não sozinha, como era normal, mas acoplada à seringa, fez um gesto para me agarrar a mão. Então pá o que é isso? Disse eu. Fica quieto para poder dar a injecção sem te magoar. Não quero, refilou ele, o sargento que venha dar a injecção, todos os dias estes enfermeiros da merda fazem doer como o caraças. Os enfermeiros da merda, eram os enfermeiros com experiência que tinham sido mobilizados para o Ultramar, e que eu estava a substituir, por isso passava a ser também um enfermeiro da merda.
Grave golpe na minha alta estima, ser recusado por um doente. Não vou chamar o sargento merda nenhuma, ripostei, se ainda não te dei nenhuma injecção como sabes que te vai doer? Vocês são todos iguais, continuou ele, andaram a aprender por aí qualquer coisa e agora vêm praticar no nosso corpo.
Fez um silêncio na enfermaria, todos estavam a olhar para ver como é que a cena ia acabar.
Recuperei um pouco, e tentando imprimir o maior à vontade nas minhas palavras, lancei o desafio, olhando para o resto dos doentes. Pago um cerveja a todos se a injecção te fizer doer.
Boa, alinho nessa, gritou alguém. Alinhas porque não és tu que vais tomar a injecção, replicou o cama 1. Não sejas maricas, o gajo está a dizer que não dói, entrou outro na conversa. A promessa da cerveja estava a sortir efeito. Com mais uma ou duas insistências, o cama 1 lá resolveu permitir que eu desse a injecção. Apertei-lhe a massa muscular lateral da coxa, e depois de desinfectar, com uma estocada certeira e seca espetei a agulha e fiquei juntamente com toda a enfermaria à espera do resultado.
Olhou para mim e disse: sem dor, sem dor totalmente não foi, mas não fazes doer como os outros. Sem dor totalmente é uma outra técnica usada só para as mulheres, se queres também na próxima posso usar, fazia eu já graça, com um ar mais seguro de mim. Virei-me para os outros e disse, malta ainda não é desta que me comem a cerveja, mas reflecti rapidamente e acrescentei, estava a brincar, quem pode beber? A rodada continua por minha conta. Olhei de novo para o doente da cama 1 e disse a sorrir, tu não devias beber por desconfiares das minhas habilidades, mas por esta escapas. A cara dele agora já era sorridente, na perspectiva da cervejola.
A primeira grande tensão tinha passado, sentia-me mais seguro e abordei o doente seguinte aquém era preciso renovar o penso, o penso como quem diz, um pensão, pois tinha sido operado ao abdómen para extracção de uma ou duas balas.
Também não me pareceu com muito à vontade. Então o que é? Não tenho injecção para te dar, informei eu. Não é isso, é o adesivo. Claro, era um placa enorme de adesivo que necessitava de ser removida para se poder mudar o penso. Calma vou tentar tirar o adesivo sem causar dor, como vês é a minha especialidade, tudo sem dor. Com muito cuidado depois de embeber o adesivo em éter, fui removendo-o a pouco e pouco não causando praticamente dor. Vamos continuar com a aposta das cervejas ? perguntei, mas ninguém respondeu. Depois de uma boa desinfecção, mudança de dreno, e colocação de medicamentos na ferida, voltei a colocar o penso com o respectivo adesivo.
No doente a seguir, ao ler o boletim médico para ver as prescrições, verifiquei que não haviam nenhumas. Um pouco duvidoso perguntei, não andas a tomar nada? Ele com um ar muito simpático respondeu-me, não pá, estou a aguardar para ir ser operado na Alemanha. Na Alemanha ? mas o que é que tens para ires passear à Alemanha? Estou paraplégico da cintura para baixo, foi uma bala na coluna. Nunca me arrependi tanto de ter feito uma pergunta, sentia-me um perfeito idiota.
Conforme depois pude constatar os nossos rapazes paraplégicos iam à Alemanha para serem operados à coluna vertebral, após o que regressavam a Portugal para a possível recuperação, mas isso é outra história que contarei mais à frente.
Quando abordei por fim o último doente, já estava com a confiança de quem já faz aquele serviço há muito tempo. Ele também já me olhou sem o ar temeroso, mas com pouco à vontade e em tom de voz baixo disse-me: preciso de mudar a algália. Fui apanhado de surpresa, nunca tinha mudado uma algália, só conhecia a teoria. Não querendo dar parte de fraco, disse com ar sério, agora é que vou chamar o sargento, os pénis são com ele. Gargalhada geral. Estava a conquistar o meu reino.
A enfermaria, completamente cheia, tinha onze camas. Cinco de cada lado e uma na parede do fundo entre duas janelas. Tinha muito bom aspecto, pois o hospital não era muito antigo, e a degradação ainda não se fazia sentir. O asseio era prioritário.
Munido do carro de tratamentos, com compressas, instrumentos diversos, seringas, remédios etc. entrei na enfermaria sob o olhar desconfiado dos doentes. Se o meu à vontade já não era muito, com estes olhares perdeu-se por completo. Depois de uns bons dias, meio engasgados, dirigi-me à cama nº 1 para iniciar o trabalho.
O primeiro doente não precisava nada de especial, além de uma injecção de antibiótico, receitada pelo médico, pois tinha sido operado a uma fractura múltipla com solução de continuidade na perna direita havia dois dias. Como não podia mover-se, e estava de barriga para o ar, não podia dar a injecção na nádega, a espetadela deveria ser dada na coxa que não tinha sido operada.
Quando ia a espetar a agulha, não sozinha, como era normal, mas acoplada à seringa, fez um gesto para me agarrar a mão. Então pá o que é isso? Disse eu. Fica quieto para poder dar a injecção sem te magoar. Não quero, refilou ele, o sargento que venha dar a injecção, todos os dias estes enfermeiros da merda fazem doer como o caraças. Os enfermeiros da merda, eram os enfermeiros com experiência que tinham sido mobilizados para o Ultramar, e que eu estava a substituir, por isso passava a ser também um enfermeiro da merda.
Grave golpe na minha alta estima, ser recusado por um doente. Não vou chamar o sargento merda nenhuma, ripostei, se ainda não te dei nenhuma injecção como sabes que te vai doer? Vocês são todos iguais, continuou ele, andaram a aprender por aí qualquer coisa e agora vêm praticar no nosso corpo.
Fez um silêncio na enfermaria, todos estavam a olhar para ver como é que a cena ia acabar.
Recuperei um pouco, e tentando imprimir o maior à vontade nas minhas palavras, lancei o desafio, olhando para o resto dos doentes. Pago um cerveja a todos se a injecção te fizer doer.
Boa, alinho nessa, gritou alguém. Alinhas porque não és tu que vais tomar a injecção, replicou o cama 1. Não sejas maricas, o gajo está a dizer que não dói, entrou outro na conversa. A promessa da cerveja estava a sortir efeito. Com mais uma ou duas insistências, o cama 1 lá resolveu permitir que eu desse a injecção. Apertei-lhe a massa muscular lateral da coxa, e depois de desinfectar, com uma estocada certeira e seca espetei a agulha e fiquei juntamente com toda a enfermaria à espera do resultado.
Olhou para mim e disse: sem dor, sem dor totalmente não foi, mas não fazes doer como os outros. Sem dor totalmente é uma outra técnica usada só para as mulheres, se queres também na próxima posso usar, fazia eu já graça, com um ar mais seguro de mim. Virei-me para os outros e disse, malta ainda não é desta que me comem a cerveja, mas reflecti rapidamente e acrescentei, estava a brincar, quem pode beber? A rodada continua por minha conta. Olhei de novo para o doente da cama 1 e disse a sorrir, tu não devias beber por desconfiares das minhas habilidades, mas por esta escapas. A cara dele agora já era sorridente, na perspectiva da cervejola.
A primeira grande tensão tinha passado, sentia-me mais seguro e abordei o doente seguinte aquém era preciso renovar o penso, o penso como quem diz, um pensão, pois tinha sido operado ao abdómen para extracção de uma ou duas balas.
Também não me pareceu com muito à vontade. Então o que é? Não tenho injecção para te dar, informei eu. Não é isso, é o adesivo. Claro, era um placa enorme de adesivo que necessitava de ser removida para se poder mudar o penso. Calma vou tentar tirar o adesivo sem causar dor, como vês é a minha especialidade, tudo sem dor. Com muito cuidado depois de embeber o adesivo em éter, fui removendo-o a pouco e pouco não causando praticamente dor. Vamos continuar com a aposta das cervejas ? perguntei, mas ninguém respondeu. Depois de uma boa desinfecção, mudança de dreno, e colocação de medicamentos na ferida, voltei a colocar o penso com o respectivo adesivo.
No doente a seguir, ao ler o boletim médico para ver as prescrições, verifiquei que não haviam nenhumas. Um pouco duvidoso perguntei, não andas a tomar nada? Ele com um ar muito simpático respondeu-me, não pá, estou a aguardar para ir ser operado na Alemanha. Na Alemanha ? mas o que é que tens para ires passear à Alemanha? Estou paraplégico da cintura para baixo, foi uma bala na coluna. Nunca me arrependi tanto de ter feito uma pergunta, sentia-me um perfeito idiota.
Conforme depois pude constatar os nossos rapazes paraplégicos iam à Alemanha para serem operados à coluna vertebral, após o que regressavam a Portugal para a possível recuperação, mas isso é outra história que contarei mais à frente.
Quando abordei por fim o último doente, já estava com a confiança de quem já faz aquele serviço há muito tempo. Ele também já me olhou sem o ar temeroso, mas com pouco à vontade e em tom de voz baixo disse-me: preciso de mudar a algália. Fui apanhado de surpresa, nunca tinha mudado uma algália, só conhecia a teoria. Não querendo dar parte de fraco, disse com ar sério, agora é que vou chamar o sargento, os pénis são com ele. Gargalhada geral. Estava a conquistar o meu reino.
9 Comments:
Olá Augusto.
é sempre interessante conhecer histórias de algumas profissões para conhecermos mundos ocultos.
Para mim, se existe céu, é para lá que vão os enfermeiros quando morrerem pelo serviço que prestam.
Com muitos momentos difíceis entrecortados por outros um pouco hilariantes, aqui está uma prova da realidade que é ser enfermeiro, e daquilo se vive numa enfermaria, num hospital. O balanço pode ser duro, por vezes, mas não deixa de ser positivo e edificador para todos.
Espero que nos continue a brindar com muitas mais lembranças. Aprendemos sempre muito.
Realmente, isso é que foi um baptismo de fogo, Augusto. Essa do sargento tratar dos pénis... ele soube disso?! heheheh! Beijocas!
Gostei de ler as tuas lembranças. Medecina é um oficio que admiro, mas para o qual nao tenho mesmo vocação (ligeira fobia ao sangue não ajuda). E claro, deu para me rir com alguns dos episódios :)
Abraço
Quando as pessoas fazem aquilo para que têm jeito é assim: as adaptações são mais fáceis e corre tudo muito melhor. Embora, por vezes, isso dependa também de algum "savoir faire" que deveria (não sei se é) ser ensinado, porque há algumas pessoas que sabem fazer as coisas, só não sabem "vender" as suas "capacidades"...
Em resumo: uma boa história (daqui a pouco dá um livro de memórias)...
É assim...devagar, devagarinho...conquistamos o nosso espaço.
Grata pelas tuas visitas. Jinho de boa Noite,
BShell
É mesmo assim! Temos é de ter confiança e não dar parte fraca. Gosto muito das suas Lembranças. Obrigada por as partilhar connosco.
Susana, gostava de agradecer e responder no seu blog, mas está inacessível. É um esconderijo propositado?
Um abraço. Augusto
Paoppaboca, estou a respnder aos comentários nos próprios blogs de quem me visita e os fez, é mais personalizado, mas o teu está incomunícavel, nem posso comentar o que escreves o que é uma pena.
É essa a minha intenção, contar a outra faceta da guerra, da qual ninguém falou ou fala, por isso ficou esquecida na gaveta das conveniências.
Um abraço. Augusto
Enviar um comentário
<< Home