quinta-feira, março 24, 2005

Lembranças X

O piso era formado por um corredor a todo o comprimento do edifício, para o qual davam as portas das enfermarias, de um lado, e do outro janelas para o exterior. Subindo as escadas a primeira porta, em frente, era a do gabinete do sargento. Voltando para a direita haviam três enfermarias, e para a esquerda outras três, depois das quais a havia uma porta de vai e vem, que separava as enfermarias dos praças das duas seguintes reservadas aos sargentos. Na zona dos sargentos havia ainda do mesmo lado mais uma enfermaria pequena vazia ao fundo do corredor, e do lado oposto a esta uma pequena sala de apoio.
As escadas que levavam ao primeiro piso, terminavam num grande patamar. Antes de entrar para o corredor das enfermarias, tínhamos do lado esquerdo, a copa e o refeitório para os doentes que se podiam levantar, e do lado direito, a sala de tratamentos e o dispensário.
Feita a apresentação das instalações, o sargento levou-nos até à enfermaria numero 1, que ficava na ala esquerda, e abrindo a porta disse-me, esta é para ti, a numero 4, que ficava do outro lado, é para o Galrinho, após o que se foi embora para o seu gabinete.
Entrei na enfermaria e senti um calafrio na espinha ao ver o aspecto dos doentes. Uma sensação de vazio de conhecimento invadiu-me como se eu não tivesse aprendido nada e estivesse na mais perfeita ignorância da função. Um nervoso de impotência perante todo aquele cenário fazia-me tremer as pernas e engasgou-me a garganta ao dar os bons dias. Tudo era ligaduras, gessos, balões de soro, membros em tracção etc. Após uma olhadela pela sala, e ter trocado dois dedos de conversa com alguns dos doentes, saí e regressei ao gabinete, onde já se encontravam o Galrinho e o Victor.
Então pá como é a tua enfermaria? Perguntei ao Galrinho. Porra, o nosso primeiro tem de nos ajudar, ou não sei como vai ser, respondeu olhando para o sargento. Com um sorriso, este retorquiu. Já disse para me tratarem só por António, quanto ao resto claro que vou ajudar. Agora, continuou, vão ter com o cabo Alberto para vos dar as batas e as alpercatas, olhem que não quero ninguém de sapatos no serviço, é contra o regulamento. Depois vão à secretaria ver a escala de serviço e apareçam depois de almoço. Para além do serviço na enfermaria, ainda tínhamos fazer, o que se chamava no hospital, o plantão nocturno ao serviço.
Depois do almoço, quando regressamos ao gabinete, o sargento já não estava, tinha saído e só voltava no dia seguinte. Segundo nos informaram era o que acontecia praticamente todos os dias.
Mas que grande merda, berrou o Galrinho, se acontece alguma coisa da parte da tarde como é que a gente vai fazer? Grande lateiro. Claro que a situação não era tão grave assim, pois ainda haviam os quatro enfermeiros já com experiência e em caso de necessidade podia-se sempre recorrer ao médico de serviço.
Passamos o resto da tarde à conversara no gabinete com os outros enfermeiros mais antigos. Realmente somos uns gajos com muita sorte, opinou o Victor, em não estarmos no lugar deles. É tudo malta da nossa idade e o estado desgraçado em que estão e em que alguns vão ficar. Viram aquele que não tem os dois braços?, parece que foi quando estava a desmontar uma mina. Já pensaram bem o que é ficar sem os braços aos vinte anos? Sem um braço agente ainda se arranja, mas sem os dois, valha me Deus. Tem vinte anos, que vai ser da vida dele? O Victor estava mesmo emocionado.
Olha que há casos bem piores do que o dele, informou um dos enfermeiros mais antigos. Isto agora não está nada mau, mas deve estar para chegar mais uma leva deles, e então é que vocês vão ver o que é bom. Desde que começaram as operações no norte de Angola que isto não para. No princípio, a maior parte dos feridos eram provenientes de desastre de viação, mas agora começam a aparecer, e muitos, aquilo que chamamos de feridos em combate. Alguns vêm em tal estado, só visto. Segundo eles dizem, os terroristas estão a usar armas cada vez mais modernas.
Sim o tempo da catana já acabou, interveio o Galrinho. Em Fevereiro de 1961, quando a UPA atacou e massacrou brancos e negros às centenas no Norte de Angola, vinham só armados de catanas e pedrados para terem coragem.
E não eram angolanos à procura da autodeterminação, é preciso dizer, acrescentou o Victor, mas sim grupos que vinham do exterior apoiados pela União Soviética, Estados Unidos, China, Inglaterra e até Brasil. Cheirava-lhes a petróleo. Se não tivessem descoberto o petróleo em Angola estou convencido que não estaríamos em guerra.
E já lá vão dois anos, entrei na conversa, que esta merda existe e não há meio de se resolver. Não estamos perdendo terreno, mas a guerra está a ficar difícil. Não estávamos preparados para nenhuma guerra quanto mais para guerra de guerrilha que é a pior de toda. As emboscadas são o que mais atinge a nossa malta, em guerra aberta os terroristas não tinham chance, a aviação dava cabo deles.
Resolver é o tanas, vocês chegaram agora e não sabem nada do que se passa, afirmou o outro enfermeiro com experiência. Já começámos a recebemos feridos da Guiné.
Da Guiné? interrogou o Galrinho. Mas na Guiné não havia guerra.
Isso é o que eles dizem, ou melhor não dizem nada, para o povo não saber, mas desde o dia 23 de Janeiro deste ano, ou seja há cinco meses, que começou lá, com um ataque do PAIGC a um quartel. Respondeu o mesmo enfermeiro experiente.
Fez-se um pequeno silêncio que aproveitei para ver as horas. Malta são cinco horas, vamos embora que amanhã há mais. E fomos para casa.

10 Comments:

Blogger Estrela do mar said...

...Augusto...venho desejar-te uma Páscoa feliz...
Um beijinho*.

1:07 da manhã  
Blogger Biranta said...

Para quem tenha a cabeça no lugar e sentimentos humanos, é difícil dizer se se sofre mais na frente de batalha ou a observar (e a ter que tratar) as consequências da cretinice de quem governa. Enfim, com vinte anos não se pensa muito nisso, mas sofre-se na mesma. E pensar que continuam a existir coisas destas (piores), pelo mundo. E pensar que, mesmo aqui, a violência (muita dela evitável) continua a fazer as suas vítimas, cada vez com mais frequência. Eu estive lá, no norte de Angola, em 1970. Felizmente numa "missão" que não era de risco e que nos permitia ir a locais "proibidos" para as forças militarizadas. Ingenuidade e generosidade dos 20 anos...
Bom texto! Desejo-lhe uma Boa Páscoa, no sentido de "passagem" para algo melhor! Ou no sentido que faça mais "sentido". Bom fim-de-semana.

11:13 da manhã  
Blogger Unknown said...

Mais um bom e interessante texto.
Boa Páscoa Augusto. Deixo-lhe um miminho aqui http://www.ideotario.com/pascoa_feliz_amigos.jpg

juro-lhe que não é uma natureza morta. Já acabei com elas, passei a outra fase mas mantenho-me no Van Gogh. Também já passei pela fase de não gostar de naturezas mortas, agora deu-me para gostar.

5:52 da tarde  
Blogger Politikus said...

Como escreveu alguém: recordar é viver... Boa Páscoa.

3:06 da tarde  
Blogger BlueShell said...

...em 61 ...nasci eu!
Li o texto....fiqquei triste, Augusto.


Vinha e venho desejar-te uma páscoa abençoada junto dos que amas.
Jinho, BShell

10:38 da tarde  
Blogger Å®t Øf £övë said...

Passei para desejar uma Páscoa feliz.
Abraço.

12:58 da tarde  
Blogger BlueShell said...

Augusto...estou arrepiada até aos ossos...e triste- jinho, BShell

11:50 da tarde  
Blogger augustoM said...

Olá Estrela do Mar
Obrigado pela visita.
Um beijo. Augusto

Olá Barinta
Sem dúvida que se sofre mais física, moral e psicologicamente na frente de batalha. No hospital o nosso "sofrimento" era a solidariedade, que todos os nossos camaradas feridos, mereciam da nossa parte.
Essa solidariedade não era uma prova de ingenuidade, mas sim de generosidade que lhes era devida, e na qual estavamos todos empenhados. Tinhamos todos 20 anos.
Um abraço. Augusto

Olá Fernando
Não vou faltar, para além da ementa me parecer bos, será uma excelente oportunidade para nos conhecermos todos pessoalmente.
Um abraço. Augusto

Olá Jorge
Vou partilhá-las convosco
Um abraço. Augusto

Olá Polittikus
Sem dúvida, ainda continuam vivos na minha memória todos estes episódios.
Um abraço. Augusto

Olá Shell
Julgo que tens o direito e talvez o dever de saber o que se passou durante a tua infância.
Um beijo. Augusto

Olá Arte of Love
Obrigado pela visita.
Um abraço. Augusto

Natércia
Como sabe já visitei o seu blog. Felicidades para ele.
Um abraço. Augusto

Olá Whitball
Mas não deveria ser.
Um abraço. Augusto

9:59 da tarde  
Blogger augustoM said...

Olá Cecília
Só hoje estou a ler os comentários ao meu texto e a responder, mas não consigo abrir a página que sugeriu, contudo, obrigada.
Um abraço. Augusto

10:12 da tarde  
Blogger BlueShell said...

Oi...vinha ver se havia novidades. Um aboa semana de trabalho, caríssimo.

9:16 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home