sábado, janeiro 22, 2005

O matriacado

Quando no século passado as mulheres iniciaram os movimentos emancipadores da mulher, decerto que ao fazerem-no não reivindicavam um direito já possuído, mas um direito que queriam vir a possuir.
Manifestação de um desconhecimento total de qual foi o papel da mulher no princípio das sociedades e a sua influência. No princípio foi em volta dela que todas as sociedades se desenvolveram, sendo atribuído à mulher o papel mais elevado que se posa imaginar numa sociedade, a autoridade suprema: o sistema de matriarcado.
Na Pré-história os núcleos populacionais agrupavam-se em volta das mulheres, pois estas na sua condição mais sedentária, durante o Neolítico, cultivavam com os seus filhos os campos, constituindo por isso o fundamento da vida social.
Pode-nos parecer inverosímil, mas a agricultura foi uma invenção das mulheres, que durante vários milénios ficou sob o seu controle, enquanto os homens se dedicavam exclusivamente à caça, o que os levava a fazer ausências muito prolongadas, diminuindo significativamente a sua influência no quotidiano do grupo.
A família composta pela mãe e filhos, formava uma unidade económica auto-suficiente: a mãe proporcionava os alimentos vegetais, os filhos a pesca e a caça miúda, pelo que era muito grande a influência feminina na sociedade. Ela desempenhava o principal papel no campo económico, regia a estrutura social e exercia o poder.
Entre a mãe e os filhos existiam laços muito fortes, contudo, não existia vinculação homem/mulher, nem vínculo entre pai e filho. A principal razão residia no facto de que o homem desconhecia ser pai dos seus filhos. Os cientistas partem do pressuposto de que a ignorância da paternidade, foi o principal facto que propiciou a fase matriarcal.
Pode-nos parecer incrível, mas a verdade é que durante os tempos ancestrais, a espécie humana não relacionava o acto sexual com a gravidez.
No grupo o poder da mãe aparece essencialmente como fonte de toda a vida, nessa época em que a união conjugal não existia.
A expressão “como fonte de toda a vida”, expressa a crença arcaica de que a mulher criava sozinha um novo ser, acreditando que a reprodução seria assexuada, sem a intervenção do homem. Por isso não surpreende que não existisse nenhuma relação causa/efeito do acto sexual.
O aparecimento da gravidez, nos meses posteriores ao acto sexual, era atribuída à relação entre a mulher e a Deusa Terra, apostolando da origem da matriarca posteriormente.
Na savana a mulher ocupava uma posição de privilégio, pela razão de ser a única portadora do milagre da procriação.
Com o tempo a Deusa Terra deu lugar à Deusa Agrícola. Sem dúvida que a sua representante humana foi uma mulher, a mais poderosa, a mais sábia. A sua posição de Grande Sacerdotisa, autêntica rainha suprema, tornou-se hereditária. Um dos primeiros cultos que aparece comum a todas as culturas do Neolítico, mesmo algumas já sob a direcção patriarcal, é o da deusa da fertilidade, representada por uma estatueta de mulher nua e gorda.
No princípio todas as sociedades matriarcais passaram por uma primeira etapa matrilinear, donde a descendência por linha feminina era universal no período arcaico.
As instituições matriarcais sobreviveram até ao aparecimento dos primeiros Estados, nos quais nos primeiros tempos, a herança ao trono se fazia por via matrilinear, o que põe em evidência destacada a presença do matriarcado arcaico. Segundo os cientistas Hawkes e Woolley, pode-se afirmar que descendentes matrilineares chegaram até às civilizações egípcia e cretense. As primeiras sociedades neolíticas, enquanto duraram no tempo e no espaço, deram à mulher a mais alta condição que jamais haviam conhecido.
Assim na Pré-história e em algumas regiões nos princípios da história, existiu uma sociedade matriarcal pacífica (Virginal) na qual o feminino tinha o principal papel no mundo social. As mulheres exerciam a sua autoridade sobre os seus descendentes matrilineares reunidos em tribos independentes: exercia o poder político, económico e religioso. Nas mais antigas culturas agrícolas, mandaram, sem sombra para dúvidas, as mulheres: a Grande Mãe inclusive tem ao seu serviço uma corte de donzelas, filhas, netas e parentes.
Viviam em plácidas comunidades sem guerras. A autoridade era exercida legitimamente por descendência matrilineare da Mãe Ancestral/Deusa que havia dado origem ao povoado.
A vida matriarcal era pautada por uma integração profunda com a natureza, baseada na colaboração, na tolerância e nas trocas solidárias. Os instintos não eram reprimidos e psicologicamente havia ênfase para os sentimentos e intuição.
Nessas sociedades não existiam estruturas hierárquicas autoritárias ou disputas motivadas pela competição. Ao contrário, as instituições eram colectivas e baseadas na partilha dos alimentos e bens.
Citando Leornardo Boff: “ É o tempo das grandes deusas que inspiram organizações sociais marcadas pela cooperação, pela reverência em face da vida e dos seus mistérios (…) A natureza não é vista como um meio a ser conquistado, mas como uma totalidade da qual cada ser humano é parte e parcela e com a qual deve viver em harmonia, no respeito e na veneração.”
Citando Heide Götther Abendroth “Pesquisas modernas sobre o Matriarcado analisam e afectam todos os campos do conhecimento. Elas modificam a nossa compreensão da história, que tem sido determinada pela visão patriarcal. E modificaram a nossa visão do mundo e da vida, e mesmo da nossa pessoa como um todo.”
Em 3.000 a.C. aproximadamente, este modelo de vida baseado na colaboração e na intimidade com a natureza, passou a ser substituído por sistemas patriarcais.
Com o advento civilizacional, o uso das tecnologias, o sentido de posse e de competição e consequentemente a guerra, o homem começou a usurpar o poder político às mulheres e mais tarde o religioso.
Com o patriarcado ocorreu a supervalorização do intelecto e do pensamento lógico-racional, em detrimento do corpo, dos instintos e da emoção. A religião transformou a deusa da fertilidade numa prostituta que tem só como fim a perdição do homem.
A civilização relegou a mulher para segundo plano, no qual se manteve aproximadamente quatro milénios, estando só agora a dar os primeiros passos no sentido da sua revalorização.

10 Comments:

Blogger oasis dossonhos said...

Agora em Klepsidra, nome que me atrevo a dizer que gosto mais, continuas a ser de leitura de referência.
Comecei em 1 de agosto do ano passado titubeante, a explorar caminhos novos...daqui a uns tempinhos, lá mais para a Primavera/Verão não seria giro encontrarmo-nos, com a Ana, a Stilforty- que já não consigo abrir, pois o blogue dela está "pesado" e quando a tento ler, o pc faz "crash" :-( ?
Gostava de vos conhecer...
E porque não entre 19 e 22 de Maio no III Festival Islâmico de Mértola, entre a magia do olhar e a embriaguês dos aromas? Vai haver por lá tanto para saborear...
Abraço!
Luís

1:58 da tarde  
Blogger AnaP said...

Mais um texto instrutivo, mais uma coisa que aprendi. Um beijinho muito grande, Augusto!

3:12 da tarde  
Blogger Unknown said...

Mais um interessante texto. Um abraço e uma boa semana.

10:28 da tarde  
Blogger hfm said...

Gostei muito de te ler.

4:11 da tarde  
Blogger A. Narciso said...

Sempre a aprender ctg Augusto. Nunca é demais salientar o excelente trabalho de investigação que fazes e que por aqui partilhas no novo espaço Klepsidra (gosto do novo nome).
Abraço

6:08 da tarde  
Blogger augustoM said...

Olá Jorge
Sempre amável no comentário.
Um abraço. Augusto

Olá Luís
Talvez venha a ser possível. Sempre fui adepto de comeres regionais.
Um abraço. Augusto

Olá AnaP
Obrigado pela visita.
Um beijo. Augusto

Olá Cecília
Uma boa semana para si também.
Um abraço. Augusto

Olá Fernando
Uma lição mas pouco, só umas curiosidades que acho interessantes.
Um abraço. Augusto

Olá Ana Maria
Coitados dos meus textos.
Um beijo. Augusto

Olá Tim Bora
Também concordo consigo, é bem possível que o mundo futuro volte a ser das mulheres.
Um abraço. Augusto

Olá Letras ao Acaso
Não consigo comentar o seu blog, os comentários não abrem. É de propósito? Vou fazer aqui o meu comentário ao seu último poste, de que gostei muito e do qual escolhi uma passagem que gostei particularmente.
"A cabeça que se esvai em múltiplos pensares e parte em debandada numa frenética busca ao imaginário de um real tão real que o sonho parecerá pesadelo"
Um abraço. Augusto

Olá Helena
Obrigado pela visita.
Um abraço.

Olá Alexandre Narciso
O novo nome de certa meneira tem relação com o que escrevo.
Um abraço. Augusto

10:09 da tarde  
Blogger VdeAlmeida said...

Mais um texto muito pertinente e excelentemente conseguido. Um abraço, Augusto

9:18 da tarde  
Blogger BlueShell said...

Sim, vou andar por aqui. Penso que o meu pai gostaria. BS

10:50 da manhã  
Blogger Silence Storm said...

Interessante mas polémico.
O poder das mulheres acaba sempre por vir ao de cima.
No caso da sociedade portuguesa, ele revela-se na excessiva matriarcalidade sobre as crianças e até nos proprios maridos... Em vez de tratarmos as esposas como mulheres fêmeas, quantas vezes as tratamos como mães asexuadas?

8:53 da tarde  
Blogger augustoM said...

Olá Yardbird
Obrigado pela visita.
Um abraço. Augusto

Olá Shell
E eu teria muito gosto em o ter como leitor.
Um beijo. Augusto

Olá Armando
Tem toda a razão. O exagero do matriarcado é por vezes muito prejudicial na família
Um abraço. Augusto

12:12 da tarde  

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