sexta-feira, novembro 02, 2007

Falar de pobreza II

Falar da pobreza, parece estar na ordem do dia, ainda que poucas pessoas procurem conhecer afundo o fenómeno. A pobreza não é uma doença súbita, é uma patologia lenta que nos vai consumindo sem darmos por isso e, um dia, podemos acordar doentes. Talvez pareça excessivo, mas vou procurar fazer uma análise da evolução portuguesa ao longo dos últimos 100 anos. Tenho 66 anos de idade, o que me coloca na qualidade de observador de, pelo menos, meio século. Convido todos os que me visitam a participarem, não como um debate, mas uma tribuna aberta a todas as opiniões. Vale a pena perder um bocadinho do nosso tempo a pensar no assunto, pois o que se mostra no horizonte, não é nenhum mar de rosas.
Para a elaboração dos meus textos, vou-me socorrer da obra Portugal Século XX de Joaquim Vieira de onde recolherei textos, dados estatísticos e fotografias.




Civis e militares patrulhando as ruas de Lisboa na revolução de Maio de 1915, a mais mortífera de todas as acções armadas desencadeadas nesta década.


Década de 1910 a 1920

Os primeiros anos da República

Estatística referente a 1910
População 5.960.056 (homens 2.828.691 - 47,5% mulheres 3.131.365 - 52,5%) (menores de 20 anos 2.615.906 - 43,9% maiores de 60 anos 568.342 - 9,5 %)
Mortalidade infantil (por mil partos) 209
População rural 3.440.076 - 57,7%
População industrial 1.281.439 – 21,5 %
População das cidades 979.724 – 16,4%
Lisboa 465.705
Porto 199.582
Analfabetos 4.477.790 – 75,1%
Emigrantes oficiais 39.502
Eleitores inscritos 696.171
Funcionários públicos 57.416
Escolas primárias oficiais 5.552
Estudantes do ensino primário 271.830
Estudantes do ensino secundário 10.826
Estudantes universitários 3.226
Ordenado de professor primário 20$000
Automóveis em circulação 679

“Uma revolução pode mudar as instituições, mas em nada alterou o carácter dos homens. Eles continuam a ser o que eram: perversos e imbecis"
Carlos da Maia

Portugal inaugura a segunda década do século XX com uma revolução, novo regime e, em breve, nova Constituição. É a hora do fervor republicano, da crença colectiva na radiosa aurora prometida pelo pessoal político que toma os lugares antes ocupados pelos dirigentes da monarquia. Contudo, os monárquicos que queiram manter-se nas estruturas do poder devem fazer a sua conversão ao republicanismo, assim, aparecem os “adesivos”, hoje conhecidos como os “vira casacas”, centenas de políticos e funcionários do anterior regime agora professando da mais incondicional ideologia republicana.
Dizia a propósito Raul Brandão: “Nestas ocasiões é que eu queria ver por dentro estes homens lívidos e com um sorriso estampado na cara, que, sobem as escadas dos ministérios, para aderirem à república!”

Para além do vago ideário republicano, não se praticam contudo quaisquer outros princípios ideológicos. A linha de rumo e as alianças dependem apenas das lutas entre rivais, de quem está na mó e cima e de quem está na mó de baixo, de quem é preciso derrubar e de quem se projecta elevar. O oportunismo é cego, junta moderados com radicais, anarquistas com direitistas e até republicanos com monárquicos. É o poder pelo poder, que não olha a meios para conseguir os seus fins.

A imagem de marca da República é a agitação permanente, encarada como normalidade quotidiana, como se os políticos não conhecessem outra forma de se bater pelo poder. Bombas, atentados, pancadaria, sabotagens, intentonas, revoluções.
Augusto de Castro ironiza: “As revoluções em Portugal tornaram-se periódicas e, como tal, não há razão para que não entrem, como a chuva ou o bom tempo, as festas mudáveis e os dias feriados, nas previsões dos meteorologistas e nos programas do Borda d’Água…”
A segurança atinge níveis inimagináveis durante os 29 governos destes 10 anos.

A pobreza que pode não ser só material, mas também de espírito e princípios, levou os políticos, tão ocupados nas lutas fratricidas pela cupidez do poder, a esquecerem-se das promessas eleitorais, muitas delas completamente fraudulentas e só eleitoralistas, de tal forma, que a prometida aurora radiante, viu-se coagida a um entardecer ainda mais sombrio.

Tendo antes apoiado os republicanos e, levado à letra as suas promessas de uma sociedade mais justa, os assalariados reclamam agora a aplicação do seu conceito de justiça social. A primeira grande greve foi a dos eléctricos de Lisboa. Seguem-se as paralisações do gás, dos sapateiros, dos padeiros, dos caixeiros em Lisboa, dos corticeiros e dos conserveiros em Setúbal, da têxtil no Porto e em Braga, dos jornaleiros no Alentejo e no Ribatejo, da CUF do Barreiro e dos ferroviários do Sul e Sueste. A tropa intervém e os carbonários atacam os sindicatos. Decretada a greve geral na capital, faz-se rusgas a sindicalistas e aumenta a violência entre grevistas e antigrevistas, mas a agitação operária não cessa ao longo da década.

A um país pobre na primeira década de novecentos, segue-se um país paralisado na segunda década do mesmo século. Devido às convulsões e à ineficácia dos governos em encontrar soluções e ainda com o agravamento provocado pelo esforço exigido pela nossa presença na Primeira Grande Guerra, para tentarmos salvar as colónias, a pobreza em vez de regredir, aumenta. Somos um país de pé descalço, roto e faminto.

A população aumenta, mas o número dos que vêem coagidos a buscar o pão noutras paragens, também sobe. O vergonhoso analfabetismo resiste, a mortandade infantil é abominável e as condições de higiene degradantes.

Mas nem todos os números estatísticos são pessimistas, em 1910 circulavam em Portugal 679 automóveis, mais 502 do que em 1900.

Desaparecido o papel social da aristocracia, o protagonismo transfere-se para as classes que apoiam a ascensão do novo poder político. As camadas salientes são naturalmente as que apoiam a República, em particular a classe média urbana: comerciantes, funcionários públicos, professores, escriturários, pequenos e médios empresários e profissões liberais, médicos e advogados.

Esta incipiente classe média, mas já ávida de apetites, de costas voltadas para a pobreza, começa a cavar o fosso entre os que podem ter e os que nada têm. Segrega-se a ela própria da realidade do país, procurando a selectividade do novo grupo social. É a maneira de vestir que exige elegância e estar de acordo com os ditames da moda, para os locais de estar e encontro elege cafés e salões, para divertimento o teatro, para o lazer a praia. O exibicionismo urbano passou a ser a sua maneira de estar na vida.

Contrastando com tradicional comércio de rua, que ainda se mantêm e incrementado pelo pelos que do interior vêm ganhar a vida na capital, Lisboa assiste ao crescimento do comércio de loja e à alvorada do apelo ao consumo, a publicidade.

Também esta década conhece o acontecimento mais representativo da cultura de um povo aliada às suas privações. Fátima talvez tenha representado a esperança que tinham perdido com a República.
Mas nem tudo se afogou neste tempo de mar encapelado, felizmente que Fernando Pessoa era bom nadador.






10 Comments:

Blogger Rui Caetano said...

A pobreza surge em todos os níveis da sociedade e não é apenas pobreza de fome.

9:28 da tarde  
Blogger vieira calado said...

Uma bela mostra do que tem sido
o país desde os fins do século XIX.
Os vira-casacas ainda cá andam,
com novas roupagens.
Um abraço

6:20 da tarde  
Blogger perplexo said...

Há certas ondas que afogam até os bons nadadores!

6:27 da tarde  
Blogger Diogo said...

Augusto devias ver urgentemente este filme:

Money as Debt

Já o vi mais de 20 vezes. É o 2º melhor, depois do Money Masters.

Abraço

12:14 da manhã  
Blogger Luís Galego said...

e, um dia, podemos acordar doentes.

excelente post!!!

4:28 da tarde  
Blogger Kalinka said...

OLÁ AMIGO
Falar de Pobreza!!!
Mas que assunto - tem pano para mangas...
Desde sempre tenho-me deparado com muita pobreza de espírito!!!
Mas, cada vez mais há a tal pobreza material, isto está feio.

Hoje trago-te uma informação:
Para os Amigos bloguistas que me visitam, segue a informação adicional:
O Festival vai até ao dia 1º de Dezembro;o encerramento é neste dia, é representada a peça da casa: A Farsa de Mestre Pathelin - encenada por Manuel Ramos Costa, dirigida a um público adulto.
Quem viver no Norte do País e estiver interessado é só visitar o site:
www.contactovar.com

BEIJITOS.
Hoje tirei umas horitas para fazer uma visita, pois ando atrasadissima com as visitas aos blogues dos Amigos.

9:44 da tarde  
Blogger Peter said...

"Tendo antes apoiado os republicanos e, levado à letra as suas promessas de uma sociedade mais justa, os assalariados reclamam agora a aplicação do seu conceito de justiça social."

Pois, somos sempre "comidos".

11:27 da manhã  
Blogger Leonor said...

ola augusto.
ja ha muito tempo que nao passo por aqui. nao tenho podido. nem escrever no blog. ando a usar coisas que tinham sido feitas para outros fins, rsss
excelente post o teu. mas isso nao é preciso dizer.fico sempre a aprender muito contigo.
beijinhos

8:14 da tarde  
Blogger Ashera said...

Obrigada amigo pelo teu trabalho.
Gostaria de publicar no multiply
ou tu?(???)
Artigo que precisa ser divulgado!
Afinal, a nossa historia(estória),
Tem nadadores (como diz o perplexo), porém, há sempre os ratos não se afogam.
Parabéns e bom domingo
Beijos e mais beijos
http://ashera.mutiply.com/

3:00 da manhã  
Blogger H. Sousa said...

Excelente! Algumas coisas, como a classe "merdia", não mudaram. Outras estão bem diferentes, os partidos entendem-se melhor uns com os outros para tramarem a malta.
É interessante comparar os números desta década com a anterior.
Abraços

3:22 da tarde  

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