Síndrome de invisibilidade
O quotidiano é uma amálgama de rostos que desfilam. Cegos pela indiferença, cruzam-se sem se verem, mergulhados no anonimato, onde o reconhecimento não existe, salvo algum facto os faça despertar da letargia do desprendimento.
É neste quotidiano que, olhando à sua volta, sente a solidão. Na rua, no comboio, no metro, um desfile interminável de desconhecidos ignoram-no, é como se não existisse, a invisibilidade é a sua propriedade.
Angustiado, procura, na esperança de ser correspondido por um olhar reconhecedor, mas as caras de ontem já não são as de hoje e, sem a repetição do ver, a retribuição do olhar não tem sentido.
Os dias perdem-se na resignação de que a sua hora se perdeu no tempo, mas porque o tempo não tem medida, a esperança continua a alimentar a angústia.
Um rosto repete-se, uma, duas, três vezes, até se tornar habitual. Todos os dias, à mesma hora, no metro, é pontual.
Com a habituação, aquele rosto impessoal foi tomando forma e, a forma, formosura, quando tem a percepção de ser olhado também.
Todos dias se olham e confirmam a presença. Um olhar fugidio, envergonhado na persistência, teme o equívoco.
Quando é o último a chegar à plataforma, fica a trás, tentar ultrapassar o amontoado de viajantes que, ansiosamente esperam ter lugar, não é sensato. A distância, contudo, é um lugar privilegiado para a observação, mas frustrante para quem quer ser visto, quando o outro está de costas.
Se é o primeiro a chegar, na frente, procura a ajuda de um fingido movimento involuntário que lhe permita olhar para trás, vê e, sabe que está a ser visto, mas o olhar para não se comprometer, desvia-se.
Se a chegada é simultânea, a verificação é um jogo de olhares disfarçados, no espaço reservado à timidez.
Este jogo de escondidas, é o único consolo que lhe consente a falta de determinação, para o olhar dar lugar à fala.
Passam-se os dias e as semanas e, com o tempo, os olhares tornam-se mais ousadamente pausados.
A pausa denuncia a procura, especialmente quando, devido ao numeroso movimento de passageiros, o encontro não é imediato.
Levados no turbilhão da entrada na carruagem, os olhares não conseguem ultrapassar a barreira humana, ficando adiados para a saída, que é comum, mas a correria matinal impossibilita o intento, até porque os seus destinos são diferentes.
Um dia, presos no meio da turba, não conseguem entrar na carruagem, ficando os dois sós, lado a lado na gare.
Ele nada diz, nunca estivera tão perto dela, intimidado, limitava-se a espreitá-la pelo canto do olho, quando subitamente ela olha para ele e, sorrindo, lhe diz:
- Perdemos este metro mas vamos ser os primeiros a entrar no próximo!
O inesperado torna-o mudo e, levou algum tempo a responder:
- É verdade, por vezes perder o metro trás vantagens!
Se ela percebeu o que para ele significava vantagens, ficou sem saber, mas no dia seguinte o cruzar dos olhares foi acompanhado com um – Bom Dia – sorridente, que foi retribuído.
Sentia-se eufórico, finalmente tinha a certeza de que a invisibilidade terminara.
Nos dias que seguiram, progressivamente, o Bom Dia começou a ser acompanhado com frases de circunstância – Hoje está muito frio – A chuva não há meio de nos deixar – e outras não tão meteorológicas.
Aproximava-se o Natal, altura ideal para levar um pouco mais longe a ousadia. Ela de certeza não iria negar-se a receber as Boas Festas, acompanhadas por uma rosa embalada, em jeito de prenda.
Era uma espécie de tudo ou nada, onde o tudo residia na esperança.
Na segunda-feira que antecede a semana do Natal, ela não aparece. “Hoje atrasou-se ou adiantou-se”, é a justificação. Na terça-feira, a ausência continua. “Estará engripada?!” Na quarta foi em vão que procurou por ela. “Continuará doente?!” Quinta-feira foi o dia das dúvidas se tornarem quase certezas. “Como é a quadra no Natal será que estará com outro horário?!”. Na sexta chega mais cedo e aguarda a passagem de cinco metros, dois anteriores ao habitual e dois depois, acabando por entrar só no sexto acompanhado pela desilusão.
Nem na semana do Natal, nem nas outras que seguiram, ela voltou a aparecer, nem nunca mais, acabando, angustiado, por voltar à invisibilidade.
O quotidiano é uma amálgama de rostos que desfilam. Cegos pela indiferença, cruzam-se sem se verem, mergulhados no anonimato, onde o reconhecimento não existe, salvo algum facto os faça despertar da letargia do desprendimento.
É neste quotidiano que, olhando à sua volta, sente a solidão. Na rua, no comboio, no metro, um desfile interminável de desconhecidos ignoram-no, é como se não existisse, a invisibilidade é a sua propriedade.
Angustiado, procura, na esperança de ser correspondido por um olhar reconhecedor, mas as caras de ontem já não são as de hoje e, sem a repetição do ver, a retribuição do olhar não tem sentido.
Os dias perdem-se na resignação de que a sua hora se perdeu no tempo, mas porque o tempo não tem medida, a esperança continua a alimentar a angústia.
Um rosto repete-se, uma, duas, três vezes, até se tornar habitual. Todos os dias, à mesma hora, no metro, é pontual.
Com a habituação, aquele rosto impessoal foi tomando forma e, a forma, formosura, quando tem a percepção de ser olhado também.
Todos dias se olham e confirmam a presença. Um olhar fugidio, envergonhado na persistência, teme o equívoco.
Quando é o último a chegar à plataforma, fica a trás, tentar ultrapassar o amontoado de viajantes que, ansiosamente esperam ter lugar, não é sensato. A distância, contudo, é um lugar privilegiado para a observação, mas frustrante para quem quer ser visto, quando o outro está de costas.
Se é o primeiro a chegar, na frente, procura a ajuda de um fingido movimento involuntário que lhe permita olhar para trás, vê e, sabe que está a ser visto, mas o olhar para não se comprometer, desvia-se.
Se a chegada é simultânea, a verificação é um jogo de olhares disfarçados, no espaço reservado à timidez.
Este jogo de escondidas, é o único consolo que lhe consente a falta de determinação, para o olhar dar lugar à fala.
Passam-se os dias e as semanas e, com o tempo, os olhares tornam-se mais ousadamente pausados.
A pausa denuncia a procura, especialmente quando, devido ao numeroso movimento de passageiros, o encontro não é imediato.
Levados no turbilhão da entrada na carruagem, os olhares não conseguem ultrapassar a barreira humana, ficando adiados para a saída, que é comum, mas a correria matinal impossibilita o intento, até porque os seus destinos são diferentes.
Um dia, presos no meio da turba, não conseguem entrar na carruagem, ficando os dois sós, lado a lado na gare.
Ele nada diz, nunca estivera tão perto dela, intimidado, limitava-se a espreitá-la pelo canto do olho, quando subitamente ela olha para ele e, sorrindo, lhe diz:
- Perdemos este metro mas vamos ser os primeiros a entrar no próximo!
O inesperado torna-o mudo e, levou algum tempo a responder:
- É verdade, por vezes perder o metro trás vantagens!
Se ela percebeu o que para ele significava vantagens, ficou sem saber, mas no dia seguinte o cruzar dos olhares foi acompanhado com um – Bom Dia – sorridente, que foi retribuído.
Sentia-se eufórico, finalmente tinha a certeza de que a invisibilidade terminara.
Nos dias que seguiram, progressivamente, o Bom Dia começou a ser acompanhado com frases de circunstância – Hoje está muito frio – A chuva não há meio de nos deixar – e outras não tão meteorológicas.
Aproximava-se o Natal, altura ideal para levar um pouco mais longe a ousadia. Ela de certeza não iria negar-se a receber as Boas Festas, acompanhadas por uma rosa embalada, em jeito de prenda.
Era uma espécie de tudo ou nada, onde o tudo residia na esperança.
Na segunda-feira que antecede a semana do Natal, ela não aparece. “Hoje atrasou-se ou adiantou-se”, é a justificação. Na terça-feira, a ausência continua. “Estará engripada?!” Na quarta foi em vão que procurou por ela. “Continuará doente?!” Quinta-feira foi o dia das dúvidas se tornarem quase certezas. “Como é a quadra no Natal será que estará com outro horário?!”. Na sexta chega mais cedo e aguarda a passagem de cinco metros, dois anteriores ao habitual e dois depois, acabando por entrar só no sexto acompanhado pela desilusão.
Nem na semana do Natal, nem nas outras que seguiram, ela voltou a aparecer, nem nunca mais, acabando, angustiado, por voltar à invisibilidade.
26 Comments:
ai...ai., espreitando blogs, conheci o seu.
acabei de criar um, para despejar o que vai cá dentro e que não posso mostrar a quem me rodeia.
E....deparo-me com este post....ufa...de cortar a respiração
ola augusto
sei do que falas. ando no barco, no metro, no comboio. mas diariamente, nos mesmos horarios algumas caras sao as mesmas e quantas vezes, ao longo de uma ano de trabalho nao fico em frente a mesma cara. todos se vêem mas ninguem fala. ninguem se conhece. e quando se fala todos fogem.no outro dia em psicologia falámos tambem de altruismo. ouvir o outro é tambem altruismo.
abraço da leonoreta
De passagem pela Leonor, eis que me encontro/reencontro contigo.Não é a primeira vez que por aqui passo como sabes. Muitas vezes leio, gosto, interesso-me mas saio no silêncio e não comento. No entanto, fui leitora mais assídua quando me chamava alfazemaazul. Podes retirar o link dessa flor, que só o acabou sendo por não ter conseguido registar-me como alfa-zema.
Quanto ao teu post de hoje, vesti-o que nem uma luva.Sinto-me a naufragar e espero quem me dê a mão, me encorage neste momento em que me encontro tão "down", tão à deriva. Sabes que senti uma dor no peito, quase a sufocar quando , ao finalizar a leitura do post, aquele pobre homem solitário não conseguiu oferecer a flor à " amiga" feita no meio daquela multidão de anónimos que diariamente se cruza e nem uma palavra balbucia.
Apetecia-me dizer-te muito mais mas vou fazer um post. Talvez percebas um pouco mais do que sinto.Gostei muito de ter passado por aqui.Hoje. Agora.
Beijinhos
é sempre um prazer lê-lo. venho aqui sempre, embora não comente.
uma escrita sublimar, rectilínea. um olhar desencantado sobre a solidão.
abraço do
anjo
Percebo, penso.
Boa semana e um abraço.
Augusto, apreciei muito este teu belo texto, principalmente o início:
"O quotidiano é uma amálgama de rostos que desfilam. Cegos pela indiferença, cruzam-se sem se verem, mergulhados no anonimato, onde o reconhecimento não existe, salvo algum facto os faça despertar da letargia do desprendimento.
É neste quotidiano que, olhando à sua volta, sente a solidão. Na rua, no comboio, no metro, um desfile interminável de desconhecidos ignoram-no, é como se não existisse, a invisibilidade é a sua propriedade."
Concordo inteiramente com este texto. Foi o meu dia a dia muitos anos. No entanto o meu caso foi positivo. Conheci muita gente interessante no combóio do meu dia a dia entre o Estoril e o Cais do Sodré, gente com quem me dou até hoje.
Nem sempre os encontros são "desencontrados", mas, provavelmente, na maior parte dos casos, provocam algumas desilusões...
Beijinho,
Augusto,
A verdade é que a vida está cheia de encontros e desencontros, que por vezes parecem uma fatalidade.
Abraço.
Como te entendo e te admiro pela forma como descreves os sentimentos comuns a todos nós.
Um abraço, Augusto. Visitar-te é sempre um prazer. Venho aqui muitas vezes. caladinho, nem dás por isso, mas venho cá cheirar :))
Passei, abraço,
Olá Augusto
Passei para te dizer olá e perguntar se te zangas comigo, caso te nomeie com o selo thinking blog?
Sabes fui nomeado e agora tenho de nomear 5 e axo que o teu merece...
Abraço
Caro Augusto, esta interacção dos blogs tem nítidas vantagens. O anonimato nas cidades, o estar só no meio da multidão, e as razões que a isso levam. Tudo está tão interligado que acabamos por não conseguir ver muito bem como as coisas sucedem. Só o afastamento histórico traz alguma luz, embora isso em nada afecte a vida do dia-a-dia, descrito aqui na forma de um excelente conto.
Aguardo novidades, a minha deslocação será garantida e anseio pela... surpresa.
Abraços
Olá.
Bem, eu também estava vagando por blogs que me fossem interessantes e puxa, como me agradou o seu.
Acabei de ler o post mais recente, mas ainda vou passar meu tempo lendo os outros, meu prazer é ler...e escrever...^^
Bem, vou continuar passando por aqui para ler o que tens a me dizer, ok?
Abraço.
eu quero. ser invisivel. eu sou invisivel.
mas visivelmente vejo-te. vendo e sendoi. e escrevendo. um sempre inteligente.
beijos.
para espalhar por uma certa Rapariga.
Gostei muito deste espaço onde o privilégio é dado à palavra!
Um abraço!
Bom dia e um abraço,
Olá Augusto
Foste nomeado, passa pelo "conversas".
Peter
Nos EUA - por trás de um grande Presidente está sempre um grande Procurador Geral
Dando uma fiel imagem da actual escumalha que governa a América, o Procurador Geral dos EUA, Alberto Gonzalez, depôs perante o Senado sobre a polémica demissão de oito procuradores federais que não apoiavam sistematicamente as políticas de Bush.
Gonzalez repetiu mais de cinquenta vezes que não se recordava da reunião onde a demissão de oito procuradores foi decidida.
Bush: O Procurador apresentou-se perante o Comité e prestou um depoimento muito cândido, respondendo de forma honesta a todas as perguntas que podia responder e aumentando a confiança que deposito nele para este cargo.
Jon Stewart: O Procurador Geral nem se lembra dos pormenores de uma decisão importante que andava a preparar há anos e que sabia que teria enormes repercussões políticas.
John Oliver: Realmente é difícil de compreender e foi por isso que o Presidente ficou tão bem impressionado.
Mais pormenores com Jon Stewart:
Vídeo – 4:54m
Hoje calhava. A invisibilidade. Cansaço.
Abraço,
Excelente reflexão sobre aquilo que ninguém poderá deixar de sentir.
Somos tão invisíveis quanto o espaço vazio que há entre os nossos átomos.
1 Abraço
Bom fim de semana, abraço,
O emaranhado do quotidiano... Gostei muito de ler.
No metro, todos os dias, nunca estou sózinha, levo sempre um amigo comigo, que vou desfolhando e devorando.
Um abraço amigo Augusto.
Gosto muito quando escreves sobre o dia-a-dia. Esta sucessão de encontros que relataste não poderia estar melhor descrito. Perfeito. Real. E como não podia deixar de ser, foi Ela que deu o "pontapé de saída" :-).
Beijos para ti.
(Estou à espera)
... da invisibilidade ou do anonimato, eis do que trata este texto, tão quotidianamente visível que até parece real.
De pura ficção -e mais negativo (na minha opinião), é quando as pessoas não são invisíveis de facto e querem parecê-lo...
abraço.
Tenho por hábito sobretudo quando leio os teus posts ler também os comentários para evitar repetir algo que já tenha sido por algum dos teus outros visitantes. Por isso acrescentar apenas ao que já foi por todos dito que pões em toda a tua abordagem um empenho invulgar. Um abraço do Raul
Já passo por aqui há muito tempo, mas este último post foi dos que mais gostei...
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