domingo, maio 27, 2007

A cinderela


É costume dizer-se que o hábito faz o monge, ou por outras palavras, mostra-me o que vestes e direi em que te tornaste.
Há já alguns anos, quando vendia roupa de cerimónia para senhora, as visitas aos clientes eram feitas num furgão de caixa alta, onde os vestidos, devidamente pendurados, eram apresentados aos clientes que, devido à altura da caixa de carga, permitia que entrassem nele e fizessem a sua escolha, uma espécie de loja ambulante.
O que vos vou contar hoje, não é ficção, mas uma história verídica que ocorreu durante uma dessas visitas.
Estava parado à porta da cliente de Pêro Pinheiro, a fazer a presentação dos vestidos, quando entrou na loja uma senhora, procurando um vestido para levar ao casamento da filha.
O trabalho no campo, tinha-lhe tornado a idade indefinida; rugas prematuras, cabelo puxado para trás que findava num carrapito disforme, pele escurecida pelo sol e mãos calejadas pela enxada. Vestia uma blusa e uma saia pretas, sobre a qual usava um avental também preto, enquanto a blusa era coberta por um grosso e debotado xaile, outrora, preto também. Os pés calçavam umas chinelas, gastas e deformadas pelo uso, cuja cor era difícil de identificar, devido à poeira que as cobria.
Como os negócios não se podem perder, a minha cliente rapidamente desviou a sua atenção para a senhora, ficando eu a aguardar a minha vez.
A senhora, aquém vou chamar Alice, depois de uma demorada vista de olhos pela existência da loja, apesar dos esforços da minha cliente, não conseguia encontrar o vestido que teria idealizado.
Quando já estava quase resignada em não efectuar a venda, perguntou-me se podia mostrar um dos meus vestidos. Escolheu um vestido preto, cumprido de alças finas, com aplicações prateadas no peito.
- Vai-lhe vestir esse vestido? Perguntei incrédulo.
Respondeu com um piscar de olho.
Convidou a D. Alice a entrar no gabinete de provas e, com a persistência que o negócio exige, conseguiu convencer a senhora a experimentar o vestido, que ia protestando que não era para ela aquele tipo de roupa.
A dona da loja, numa azáfama frenética, entrava e saia do gabinete de provas que, como verifiquei mais tarde não tinha espelho, levando bijutaria, sapatos e para meu maior espanto, um estojo de maquilhagem, por fim, foi a procura de um pente e aqueles acessórios que as senhoras usam para prender o cabelo.
Cá fora, enquanto esperava, só era audível a minha cliente dizer:
- D. Alice não se mexa, é só para vermos como fica.
A espera foi grande e, só a curiosidade evitava o lamentar do tempo perdido.
Parecia-me uma coisa de loucos, ou melhor de louca, vestir um vestido de cerimónia, como o que estava a ser experimentado, a quem o duro trabalho do campo lhe tinha emprestado um ar quase buçal.
Quando por fim, o reposteiro do provador foi afastado, ao ver D. Alice sair, a minha cara devia ser de tão parvo, que a minha cliente, receosa que fizesse algum comentário, fez-me sinal para ficar calado, enquanto ela conduzia pelo braço a D. Alice até perto do espelho que se encontrava numa das paredes da loja, mas não a colocou de frente para ele, mas de costas. Depois, pediu à D. Alice que fechasse os olhos e, rodou-a suavemente até ficar de frente para o espelho e ordenou:
- Pode abrir!
D. Alice olhou para o espelho, como se de uma porta se tratasse, por onde entrava ao seu encontro, outra mulher que ela não conhecia.
O vestido que cobria ligeiramente os sapatos de salto alto, fazia sobressair as formas do corpo, escondidas pelo avental, adelgaçando-lhe a silhueta. Os braços e os ombros desnudados, que a blusa havia escondido do sol, mostrando uma pele que resplandecia pela sua brancura, estavam cobertos por uma mantilha de franjas. No pescoço, uma larga gargantilha que tornava invisíveis as rugas, fazia conjunto com uns discretos brincos. O cabelo, penteado e repuxado para trás, que tinha trocado o carrapito por uma banana e, acompanhava a parte posterior da cabeça, fazia-lhe sobressair a face, levemente maquilhada, onde os olhos delineados pelo rímel sobressaíam, dando-lhe uma finura de feições. Nas mãos, um par de luvas de renda fina, encobriam a labuta diária.
Nem eu nem a minha cliente dizíamos nada, para não perturbar a intimidade da D. Alice, na descoberta dela própria.
Após alguns instantes, uma lágrima furtiva escorreu-lhe pela face, não visível no espelho, onde o sonho, inimaginável, se materializava.
Quando mais tarde voltei a visitar a cliente, curioso, perguntei-lhe pela D. Alice e, como tinha corrido o casamento.
- Ah a Cinderela!
- Como!?
- Fez um sucesso tal no casamento, que ofuscou a noiva! Quando as pessoas souberam como ela ia vestida, a terra inteira correu à igreja para a ver e uma das irmãs, de lágrimas nos olhos, carinhosamente, chamou-lhe Cinderela. Hoje, todos cá na terra lhe chamam Cinderela.

20 Comments:

Blogger Leonor said...

ola augusto.
no teu tempo o tempo era outro e no meu (o que consideras o teu tempo? o meu é mais ou menos aos 25)
curioso. so agora penso nisso. olha o que o teu comentario me faz...
entao aos 46 ja nao é o meu tempo?

a cinderela. é uma historia bonita. nao é impossivel. ja vi muitas transformaçoes destas e nao é preciso tanto.

abraço da leonoreta

9:30 da tarde  
Blogger Å®t Øf £övë said...

Augusto,
Muito comovente este relato que aqui partilhas connosco. Por vezes realmente o cuidado com a aparência pode quase fazer milagres. E pelo que contas se há alguém que o merecia como o culminar e como o momento mágico de uma vida ardua era a D.Alice.
Abraço.

11:27 da tarde  
Blogger Peter said...

Uma história interessante. Foje um pouco ao teu estilo habitual, mas li-a do princípio ao fim, apreciando os pormenores descritivos.

10:00 da tarde  
Blogger H. Sousa said...

Que posso eu dizer? És um contador de histórias nato, sabes prender e tratas os pormenores com grande mestria.
Abraços

11:02 da tarde  
Blogger Kalinka said...

OLÁ AMIGO AUGUSTO

Mas que bela história da Cinderela!!!Adoro ler-te.
Obrigado pela partilha.

Entretanto, andei por aí:
Ao subir a ladeira para o Castelo, dentro das muralhas, encontrei uma pequena loja muito atraente pelo seu aspecto moderno e acolhedor. Entrei e deparei-me com um moço novo que está no início da sua actividade ali, teve uma magnífica ideia, de vender os produtos e ao mesmo tempo, tem uma sala aconchegante e moderna, com as paredes pintadas de um laranja forte, contrastando com as mesas e cadeiras castanhas, que decoram aquele espaço, onde os visitantes poderão degustar os produtos que se vendem na loja: queijos típicos, vinhos da região demarcada do Alentejo, mel de rosmaninho, várias compotas caseiras de diversos sabores, chás de ervas e tantas outras delícias ali expostas.
Também vende artesanato tradicional, peças feitas de corno, mantas alentejanas, botas de pele e, adorei ver uma enorme quantidade de brinquedos antigos feitos de madeira por um artesão que tem 40 anos e vive das peças que faz: o cavalinho de madeira com uma roda, as cadeirinhas em madeira para crianças, a trotinete de madeira pintada com cores vivas…enfim, transportou-me aos tempos de infância. Prometi-lhe que ia divulgar o seu espaço, original e moderno.

Beijokas.
NOTA: esta é a minha história, real e muito diferente da tua.

12:30 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Se não chover... e a justiça deixar!!!

Abraço

1:41 da manhã  
Blogger isabel mendes ferreira said...

a tua imensa capacidade de metaforizar....








abraço.



____________________

9:54 da manhã  
Blogger PintoRibeiro said...

Pois. Cinderela. No ponto. Abraço Augusto.

10:51 da manhã  
Blogger AJB - martelo said...

o que a vida nos ensina, Augusto; a vida é mesmo feita destas coisas, de sonhos e de desejos que quando se realizam enchem-nos de alegrias...e os mais simples são os mais genuínos.
este podia ser um conto ou talvez seja.

9:48 da tarde  
Blogger A. João Soares said...

Multibanco. Uma batalha ganha!

Em 24 de Maio lançámos em http://domirante.blogspot.com/2007/05/carto-multibanco-explora-o-cidado.html o
alerta contra a ameaça, já tida como certa, de que em 2008 passaríamos a pagar uma taxa por cada utilização do cartão de débito multibanco, falando-se em 1,50 €, a apontámos a forma de reagir a esta exploração. Temos o dever e o direito de defendermos os nossos interesses de clientes e, dispomos de poder para adoptarmos as alternativas que iriam fazer reverter essa exploração em prejuízo dos bancos. Ter poder e não o utilizar legitimamente seria pura inépcia.

Este alerta teve eco e gerou-se um movimento de repulsa por mais esta exploração pelos serviços bancários aos cidadãos indefesos. As pessoas começam a abrir os olhos para o mundo hostil que as rodeia e procura sacar a suas poupanças, mesmo que sejam muito
Magras e insuficientes para uma sobrevivência difícil.

Agora, notícia do Jornal de Notícias diz que «a entrada em vigor da Área Única de Pagamentos em euros (SEPA) em 2008 não vai conduzir à cobrança de serviços que, actualmente, são gratuitos nas operações com multibanco, garantiu ontem o coordenador do gabinete de relações internacionais da Sociedade Interbancária de Serviços (SIBS).» «serão feitos acertos de operações, mas apenas entre a SIBS e os bancos. Entre os acertos está, por exemplo, a decomposição de taxas cobradas à Banca. Para os consumidores, afirmou, a SEPA ‘não terá impacto’ sobre as taxas em vigor.»

Está ganha uma batalha, mas não tenhamos ilusões, haverá muitas outras e cada vez mais subtis para aumentarem os seus já elevados lucros à nossa custa. Temos de estar cada vez mais atentos e prontos a fazer valer os nossos direito e usar os poderes de que dispomos como clientes e cidadãos. Uma guerra depende de muitas batalhas e ganhar uma destas não corresponde à vitória final. Da mesma forma um campeonato depende de muitos jogos e cada um é importante, embora não seja decisivo.

Cumprimentos

9:49 da manhã  
Blogger Fátima Santos said...

ternura, Augusto!

9:57 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

um relato ternurento de uma experiência real. a prova de que as aparências iludem e não há "patinhos feios". adorei ler *

6:01 da tarde  
Blogger Maria said...

É tão linda a tua história que até me fez chorar.
Beijo grande.

12:27 da manhã  
Blogger Zé do Telhado said...

Belíssimo conto, revelador de um coração do tamanho do mundo. Obrigado por me provares o que já sabia: Ainda há GENTE que vale a pena chamar amigo.

Um GRANDE abração
Zecatelhado

12:05 da tarde  
Blogger Marimenso said...

foi a passear na blogoesfera que descobri este canto e este conto, e que lindo conto. parabens!

2:32 da tarde  
Blogger Bernardo Kolbl said...

Passei, boa tarde e um abraço.

6:54 da tarde  
Blogger Unknown said...

Esta lição de vida também ensina que, ser e sentir-se uma pessoa melhor passa por sentir-se contente com o próprio, e tantas vezes nos comportámos tão mal como julgámos ser.
(porque encaixei a ideia que bebi nesta história em vários acontecimentos de várias pessoas..)

Para além da sabedoria, o que me prendeu neste conto foi a emoção, a vivida e a contagiada ao leitor. Os pormenores desenham expressões que podem pertencer a qualquer rosto..

5:54 da tarde  
Blogger PintoRibeiro said...

Bom fim de semana e um abraço Augusto.

6:24 da tarde  
Blogger chipichipi said...

Descobri uma pérola!
Adorei! Envolvi-me profundamente e percorri afoita as linhas da história.
Um abraço

9:14 da tarde  
Blogger mar said...

Com olhos cobertos de lágrimas olhaste-me a alma e pintaste-a com todas as cores do arco-íris, sabias que me ia embora e por muito que te custasse sabias que era a decisão certa.
Não soube como partiria mas sempre tive plena consciência de que um dia teria de partir, doía às vezes quando me espreguiçava na rede do jardim e olhava o céu, pensava que um dia não poderia ali estar , sabia que um dia não poderia apelidar este jardim como meu e mesmo assim, mesmo assim aproveitava o melhor que podia as coisas que ainda eram minhas, até de ti eu me aproveitava e era feliz, sou um fracasso.
Quando me viste fazer as malas como coração aos saltos, uma pressa maior que a distância que sempre estava entre nós, calaste a dor e tudo o que apetecia dizer, o silêncio cobriu o quarto, a csa, os espaços em volta e tudo o que era meu deixou de o ser, os teus olhos encheram-se com esse bando de dias que inventamos ser nossos, os teus cabelos perderam-se na imensidão dos momentos falsos que te entreguei, tudo deixava gentilmente de ser meu...
Saí com a enfermidade dos dias, verguei-me na entrada com o peso do que já fora, solucei umas quantas palavras de despedida e parti, coloquei as malas no carro, tu acenaste e bateste a porta com força, fechaste-me na rua que escolhi...

... traz-me de volta!

Lembrei-me deste meu texto assim que li a sua cinderela.

Espero vê-lo em minha casa...

Beijo em si*

Parabéns pelo livro.

5:22 da tarde  

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