quarta-feira, agosto 31, 2005

Lembranças XV

A guerra encerra em si dramas que pela sua dimensão minimizam a própria morte. É o caso do ferido que tinha chegado paraplégico da Guiné e ocupava a cama 5 da enfermaria 2. Um rapaz atleticamente bem constituído, amante e bem sucedido no desporto, bem parecido, cabo do Regimento de Paraquedistas.
A sua lesão da coluna situava-se ao nível das primeiras cervicais o que lhe paralisou o corpo limitando-lhe o movimento dos braços, ficando dependente de terceiros para se alimentar. A tristeza nos seus olhos, e o silêncio a que se acometera eram a demonstração do seu inconformismo e desespero perante a crueldade do destino.
Nós tínhamos soldados para nos auxiliarem na higiene pessoal dos doentes impossibilitados de a fazer e ministrarem as refeições aos que não tinham condições para comerem sozinhos. Claro que estes soldados que estavam de passagem, por vezes nem um mês permaneciam no serviço, não tinham a sensibilidade necessária para lidar com as situações mais difíceis, tocando muitas vezes a grosseria, pensavam somente na hora de se verem livres de tudo aquilo.
Fiquei tão impressionado com o cama 5, um jovem privado de toda a sua juventude, que passei eu próprio a fazer-lhe a higiene diária, que não era fácil num corpo adormecido, e dar-lhe as refeições. Procurava suavizar-lhe o seu sofrimento interior, fazendo tudo com a maior naturalidade, como se o que lhe estava a fazer, fosse o serviço normal de rotina para a generalidade dos doentes da enfermaria. Enquanto lhe dava a comida com uma colher, conversava com ele ininterruptamente de todos os assuntos desde o futebol ao cinema, das enfermeiras do bloco operatório, do tempo, da praia, tudo era assunto para a conversa, como se ele não estivesse na situação em que se encontrava, procurando sempre a sua interlocução.
Numa das vezes em que estava a dar-lhe de comer uma sopa, ouviu-se uma grande algazarra no corredor, provocada por três outros paraquedistas que o vinham visitar.
Ergueu a cabeça ligeiramente de lado para apurar o ouvido e ao reconhecer os amigos, fixou os olhos na porta da enfermaria, cheios de novo de brilho, revestiu o semblante com um sorriso e aguardou a sua chegada.
Ao vê-los entrar com aquela euforia própria da idade, a cama 5 estava mesmo de frente para a porta, sorriu para eles e gritou qualquer grito de saudação conhecido entre eles, ao qual os outros responderam entusiasticamente.
Existem coisas que nós mesmo sem as sabermos explicar as compreendemos. O doente procurava falar com os companheiros o mais à vontade possível, e à pergunta destes de onde estava ferido, respondeu que tinha sido atingido nas costas, mas sem mencionar o local nem a gravidade. Os amigos não faziam a menor ideia do seu estado e ele também não queria demonstrá-lo.
Quando ia pegar na colher para lhe dar a sopa, senti a mão dele segurar a minha, e compreendendo o significado do gesto, deixei dissimuladamente que ele pegasse na colher depois de a ter enchido.
Não querendo mostrar aos amigos a situação em que se encontrava, a dependência de terceiros para comer, tentou levar sozinho a colher à boca. Toda a enfermaria, que conhecia o seu estado, ficou de respiração suspensa a olhar para ele. Num primeiro impulso, após agarrar a colher, conseguiu mover o antebraço levantando a colher e em seguida tentou levantar o braço para a levar à boca, mas este movimento ficou parado no tempo a meio do percurso, travando-se então uma luta de vida ou de morte entre a vontade e a possibilidade.
Com o braço semi levantado, o esforço da vontade foi tão grande e angustiante que nos segundos que durou, o suor aflorou abundantemente às temperas, o sofrimento do esforço estampou-se-lhe no rosto e as lágrimas da frustração começaram a escorrer-lhe pelo rosto.
Depois, dá-se o impossível, pela última vez, não sei como, num gesto derradeiro de raiva, consegue mover o braço e atirar com a colher pela enfermaria fora indo parar ao pé da porta. Fecha os olhos, deixa descair a cabeça, e assim ficou durante os cinco meses seguintes definhando dia a dia até morrer.
Tudo fizemos desesperadamente durante cinco meses para lhe restaurar o ânimo, mas tudo foi em vão, ele resolvera morrer.
O nosso tempo de serviço foi passando, com uns dias que nos pareciam mais longos do que outros, e a nossa mobilização para irmos para a guerra nunca mais chegava. Procuramos saber o que se passava, pois já por duas vezes estivéramos nos primeiros lugares da lista de mobilização e nada tinha acontecido. Instado, o sargento mor enfermeiro informou-nos que possivelmente nunca iríamos para a guerra, pois o director do hospital exigia que não fossemos mobilizados, tinha muita falta de pessoal e nós éramos considerados uns enfermeiros indispensáveis no hospital. Só com um ano de serviço fomos promovidos a furriéis (primeiro grau dos sargentos) o que acontecia pela primeira vez no exército português, normalmente os cabos milicianos só eram promovidos a furriéis quando embarcavam para o ultramar ou tinham completado 18 meses de serviço.
Uma vez por mês, os feridos recebiam a visita do Movimento Nacional Feminino. O movimento era formado por senhoras da mais alta sociedade portuguesa, que uma vez por mês substituíam o seu chá das cinco, por uma visita guiada pelo secretário do Ministro do Exército aos combatentes feridos, levando-lhes a sua solidariedade que consistia em duas ou três revistas e dois pacotes de bolachas, e hipocritamente anotavam as necessidades apresentadas pelos doentes, como se a resolução dessas necessidades fosse o principal empenho das suas vidas.
Era uma feira de vaidades, vestidas como se fossem para uma importante recepção, a competição feminina tem destas coisas, não deixar fugir uma oportunidade para exibir as toilletes. Caminhavam em passo cadenciado e apressado, pois o tempo disponível era cronometrado, e com gestos standarizados e precisos, tipo ritual, abeiravam-se dos doentes aquém perguntavam igualmente a mesma coisa. Como se chama?, onde foi ferido?, qual o seu ferimento?, está a ser bem tratado?, precisa de alguma coisa?. Findo o interrogatório entregavam um saco com as revistas e as bolachas, e em coro despediam-se. As suas melhoras.
À volta delas o secretário do Ministro do Exército e mais um ou dois oficiais de patente inferior, desfaziam-se em ridículos salamaleques e vénias, bem como o director do hospital, sempre aflito com alguma coisa que corresse mal durante a visita.
Mas nada corria mal, as enfermarias estavam impecavelmente limpas, os doentes de pijama lavado, barbeados e penteados, um ou outro cujo aspecto dos ferimentos pudesse incomodar as senhoras, ficava escondido por um biombo.
À saída da enfermaria o director dirigia-se a nós, mas ao invés do horroroso tratamento por tu, dizia num tom afável, muito bem senhor enfermeiro. Nas enfermarias do Galrinho a visita atingia o máximo do clímax, pois ele ia ao Jardim da Estrela mais um ou dois soldados e roubavam todas as flores que podiam para enfeitar a enfermaria. As madames deliravam. Em fim, coisas de um governo que fazia de tudo para encobrir a verdade da realidade.

13 Comments:

Blogger Unknown said...

Augusto amigo, hoje passei para deixar-te um "olá" e para dizer-te que eu ando meio a passo de tartaruga Tentando, ao máximo manter o ritmo do meu blog... devagar e sempre... mas nao desisto!
Muitos beijos e sorrisos para ti!

9:06 da manhã  
Blogger Maria Carvalho said...

E quando a realidade nos ultrapassa, ela dói demais...Um grande beijo de amizade

9:13 da manhã  
Blogger Biranta said...

As guerras são saempre infames, antes (enquanto se engendram), durante e depois. A destruição que provocam é irrecuperável, para a humanidade.
E os povos, nos nossos dias, não deviam ter necessidade de recorrer à violência, para conquistarem o direito a paz e progresso, para se verem livres da perfídia e da humilhação, para conquistarem a independência e respeito internacional... O bom-senso e a democracia deviam bastar...

12:53 da tarde  
Blogger sem medo said...

Não estamos em guerra dentro do nosso território , pelo menos pela força das armas, estamos antes em guerra pela hipocrisia, interesses e pelo desleixo;

Uma boa alegoria e uma grande metáfora ao "pão e circo" que se tornou a nossa democracia (não nos esqueçamos que foi assim que o império romano definhou e se desmoronou);

Contudo ainda acredito na luz de um túnel que teima em não acabar...

Abraço

4:54 da manhã  
Blogger A. Narciso said...

Sem palavras Augusto. A guerra deixa marcas que nem o tempo consegue apagar.
Abraço

1:12 da tarde  
Blogger Leonor said...

augusto
ja te disse uma vez. os enfermeiros são uma classe à parte deste mundo e eu sei o que digo porque de todas as vezes que fui para o hospital fui tratada com muita dedicação e paciencia.
as historias que contas do teu "hospital" equiparam-se ás minhas da minha "escola".
a tua admiração pela minha actuaçao na minha profissao é reciproca.
abraço da leonor

1:17 da tarde  
Blogger Andy More said...

Concordo em muita coisa do que dizes, embora o meu post esteja talvez fora do contexto... Para perceberes melhor o que quero dizer vai aqui e le

http://nietzsche.blogs.sapo.pt/main.html
Abraços

3:48 da tarde  
Blogger Andy More said...

Augusto, ao ler este texto a tristeza assolou-me os sentimentos de uma maneira tal que pensei em desistir de o ler. Definitivamente abomino a tristeza. Só cheguei ao fim do texto porque o narrador escreve maravilhosamente bem, e também, por se notar uma enorme sensibilidade em saber dar o volte face ao texto de maneira a suaviza-lo para quebrar a nostalgia... Bem sei que são puras verdades por isso doam mais do que se soubesse que era a penas fruto da ficção. Eu nunca fujo das coisas horrendas, porque sei que elas existem, mas se conseguir sempre evitá-las... Evitá-las-ei!
Agora em relação ao texto da inteligência, adorei e ainda me diverti, foi uma maneira de passar a esponja por cima...
Abraços

4:35 da manhã  
Blogger Mitsou said...

Passei, de fugida, para deixar um beijinho saudoso. E votos de um óptimo fim-de-semana.

2:05 da tarde  
Blogger Andy More said...

Química ou sedução...

Augusto eu sei que és casado, assim como eu... Por conseguinte isto não é para te pedir namoro!

Evidentemente que aquilo que instiga à sedução existirá quando originada por uma química atractiva de uma das partes, não querendo isso dizer forçosamente que ela seja receptiva pelo outro lado, daí haver necessidade de se socorrer e apoiar-se na arte de seduzir a abrir horizontes de maneira a que o outro lado manifeste alguma atracção quando a tal química ainda não se manifestou por estar distraída ou absorvida unicamente pelo adorno, a química fica confusa por encontrar obstáculos que será aquilo a que a gente chame de roupa para nos cobrirmos tanto do tempo como dos olhares... Porque quando as químicas são compatíveis a sedução existirá unicamente no olhar, enquanto de outra forma, terá forçosamente de haver o dialogo na utilização de estratagemas utilizando a arte de seduzir. Mostrando ou tentando mostrar que ela é possivelmente a pessoa que melhor se lhe encaixa, é por assim dizer o markting orgânico de cada um.

A química aqui, neste ponto, ainda não teve oportunidade de se revelar, daí muitas vezes haver a decepção quando dois corpos se unem porque a química não está lá ou estava apenas virada de costas...
A hipocrisia que existe na sedução é exactamente a mesma que existe nas leis inventadas pelo homem. E não é por isso que a gente deixe de a respeitar mesmo quando contra ela. Porque se fosse apenas a química, deveria ser digno de se ver o nosso meio urbano a manifestar-se! Só os animais não necessitam de utilizar a sedução porque a química deles é totalmente livre.

Abraços

6:56 da tarde  
Blogger Andy More said...

Por conseguinte, a Sedução para mim é unicamente Arte

7:03 da tarde  
Blogger Unknown said...

Augosto, tens sempre uma estória da guerra para nos contar, adoro ouvi-las. por esse motivo cá venho, mas também para saber se está tudo bem contigo.
Beijinhos

9:31 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Gosto muito destas lembranças. É preciso falar delas!

11:10 da manhã  

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