quarta-feira, março 30, 2005

A UTOPIA


Fotografia de Valery Bareta

No momento presente em que vivemos em Portugal e de uma maneira geral no mundo da globalização, achei interessante lembrar um homem e a sua obra maior, A Utopia, que teve a coragem de criticar a sociedade em que viveu. Tomás More.
Estadista e humanista inglês, nasceu em Londres a 7 de Fevereiro de 1478. Estudou em Oxford e foi grande amigo de Erasmo de Roterdão, de quem o seu pensamento recebeu grande influência.
A acção do livro começa em Bruges, onde More é enviado pelo rei em missão diplomática. Aí começa a sua obra em forma de narração, utilizando para tal um personagem, que é apresentado por ele com o nome de Rafael Hitlodeu. É um navegador português, «Já no declinar da vida. O rosto queimado deste desconhecido, a longa barba, o amplo gibão que lhe caía à vontade, o seu ar e a sua atitude, tudo indicava nele o homem do mar». Rafael acompanhara Américo Vespúcio nas suas viagens e chegara numa delas a um país desconhecido dos Europeus.
A conversa incide então sobre a situação política e social da Inglaterra. O português inteiramente ao corrente do que se passa, não deixa de reprová-la.
«A principal causa da miséria pública é o excessivo número de nobres ociosos que se sustentam do suor e do trabalho de outrem, e que mandam cultivar as suas terras, tirando a pele aos rendeiros para poderem aumentar as suas receitas. Não conhecem qualquer outra economia. Mas, pelo contrário, se se trata de comprar um prazer, são, então, pródigos a pontos de tocar as raias da loucura e caírem na mendicidade. O que não é menos funesto, ainda, é trazerem atrás de si um rebanho de criados preguiçosos, sem situação e incapazes de ganharem a vida.
Estes criados, quando caem doentes ou quando o amo morre, são postos na rua, pois preferem sustentá-los quando não fazem nada, do que quando estão doentes, e frequentemente acontece o herdeiro não estar em situação de poder manter a criadagem do pai
Eis pessoas condenadas a morrer de fome, se não têm coragem para roubar. Na verdade, terão eles outros recursos? Em busca de colocação gastam a saúde e o fato, e quando já estão pálidos de doença e cobertos de farrapos, os nobres têm-lhes horror e desdenham dos seus serviços

Rafael descreve estes bandos de mendigos vagabundos como um dos piores flagelos da sociedade do tempo. E a situação social é catastrófica ainda por outras razões, entre elas a criação exclusiva de carneiros causa grandes prejuízos à agricultura.
E o português continua, «a estas causas de miséria vêm ainda juntar-se o luxo e as suas loucas despesas. Criados, operários, camponeses, qualquer que seja a classe da sociedade, ostentam um fantástico luxo, tanto no vestir como na alimentação. Terei, também, que me referir aos lugares de prostituição, aos vergonhosos covis de embriaguez e de prazer, a essas infames casas de jogo.
Arranquem da vossa ilha essas pestes públicas, esses germes de crime e de miséria. Obriguem, por decreto, os nobres demolidores a reconstruir as herdades e os burgos que destruíram, ou então que cedam as terras aos que queiram reconstruir sobre as ruínas deixadas. Ponham um freio ao avaro egoísmo dos ricos; arranquem-lhes o direito de tudo quererem para si, de tudo monopolizarem. Que entre vós se não tornem a encontrar ociosos. Dêem à agricultura um grande desenvolvimento; criem fábricas de lanifícios e outros ramos de indústria, onde possam ocupar, utilmente, toda essa multidão de homens, cuja miséria até hoje só criou ladrões, vagabundos, ou então lacaios, o que é pouco mais ou menos a mesma coisa
».Tudo isto evidente para nós hoje, na sua época era correr um grande risco dizer ou escrever tais coisas. Neste trecho da A Utopia aqui descrito, Tomás More, insurge-se contra as próprias bases da sociedade inglesa e todo o sistema político europeu. Rejeita a nova doutrina económica desenvolvida em meados do século XIV e o impiedoso egoísmo do sistema político imposto no decorrer dos séculos transatos e sistematizado em O Príncipe, de Maquiavel, aparecido alguns anos antes da A Utopia.
More, influenciado pelos ideais da República de Platão e cristãos do direito e da justiça no governo dos Estados, faz a sua proposta para um Estado mais justo, mais humano e fraterno na segunda parte da A Utopia.
Então Rafael Hitlodeu passa a falar de um Estado ideal, imaginário, numa ilha longínqua, que descobriu no decorrer das suas viagens e onde esteve cinco anos. A Utopia, o «país de nenhum lugar».
«Na Utopia, as leis são em muito pequeno número; a administração espalha as suas benesses por todas as classes de cidadãos. O mérito recebe a sua recompensa, e ao mesmo tempo a riqueza nacional está tão equitativamente repartida, que todos desfrutam com fartura das comodidades da vida».Na ilha há muito belas cidades, todas com administração colegial e leis comuns. Os habitantes distinguem-se por uma humanidade e um requinte extraordinários e vivem felizes, graças às leis inteligentes e moderadas que regulam a sua existência. São governados por um príncipe, mas vela-se para que ele se não transforme em tirano. Todos os cidadãos, homens e mulheres, devem-se consagrar a um ou outro trabalho, mas não podem trabalhar mais de sei horas diárias. Os lazeres são consagrados a estudos úteis e formativos e a distracções. Rafael insiste no facto de na ilha maravilhosa não existirem cabarés ou outros locais consagrados a prazeres menos próprios. À população nada falta, pois os ricos repartem com os pobres. «A ilha é, portanto, uma só grande família, um só lar.» E, prossegue Rafael, para compreender as condições sociais em Utopia, é sobretudo preciso não esquecer que ali se não conhece o dinheiro.
Os habitantes de Utopia atribuem uma grande importância à filosofia e procuram continuamente o que poderia fazer a humanidade mais feliz. É por isso que o rei Utopo decretou a total liberdade religiosa em todo o país.
Esta passagem é profundamente influenciada pela religiosidade e grande espírito humanista de Tomás More.
Existe ainda em Utopia algo que Rafael deseja muito particularmente chamar a atenção: a opinião dos habitantes no que diz respeito à guerra. «Contrariamente a quase todos os outros povos, acham que não há nada mais baixo e desonroso que a guerra
Para Tomás More, A Utopia devia mostrar como poderia ser uma sociedade, se os homens se dignassem usar a sua inteligência e agissem «com senso e tacto». A obra exalta a paz, a compreensão e o amor ao próximo e a eliminação completa do egoísmo individual. Condena a intolerância e o desejo desenfreado de poderio e de dinheiro, essas forças que ameaçam a sociedade. Pretende levar os homens àquilo que a sua evolução histórica produziu de mais nobre: a civilização inteiramente voltada para o homem.
Este programa sublime, foi reduzido a pedaços no holocausto da luta entre a Reforma e a Contra-Reforma. O próprio More subiu ao cadafalso em 1535 por ter recusado trair os seus ideais pacíficos e libertadores aquando do seu conflito com Henrique VIII.

10 Comments:

Blogger André Parente said...

"A Utopia" foi leitura obrigatória para os exames de admissão à faculdade. E ainda bem. Sem qualquer habitos de leitura (que ainda hoje não tenho), foi a primeira leitura que me despertou o interesse para a defesa de causas como a igualdade, a justiça, o direito ao trabalho e educação. Esta semana, a entrar pela biografia de Ernesto Guevara de La Serna lembrei-me novamente da desse livro. Num mundo economico, não acredito no sucesso de um sistema "utópico" como dessa ilha ou num comunismo como o de Cuba mas é bom lembrarmo-nos dos seus ideias e debatermo-nos pelas suas causas.

6:27 da tarde  
Blogger BlueShell said...

Tinha uma ideia sobre o assunto, mas assim fiquei a saber pormenores. Obrigada Augusto.
Jinho e carinho, BShell

7:03 da tarde  
Blogger BlueShell said...

Tinha uma ideia sobre o assunto, mas assim fiquei a saber pormenores. Obrigada Augusto.
Jinho e carinho, BShell

7:06 da tarde  
Blogger BlueShell said...

Tinha uma ideia sobre o assunto, mas assim fiquei a saber pormenores. Obrigada Augusto.
Jinho e carinho, BShell

7:06 da tarde  
Blogger K. said...

A utopia é uma forma de lembrar, também.


Katraponga

10:15 da tarde  
Blogger Silence Storm said...

Utopias, todos as criamos, todos as evitamos. Adoro sonhar mas nao gosto de utopias, sobretudo utopias sociais. Nao esqueçam que os estados mais totalitários foram também os mais utópicos.
Como dizia Goethe, não se pode fazer uma boa embarcação com tábuas defeituosas. E o homem~´e uma tábua muito defeituosa...
Abraço,
Armando

10:18 da tarde  
Blogger NeuroGlider said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

1:29 da manhã  
Blogger NeuroGlider said...

Tive o prazer de ler a "Utopia" em Cuba e é de facto um livro revelador. Uma sociedade cooperativa e, nas palavras de Pessoa, "sem ficções sociais" é mesmo utópica mas necessária.
É de ler também o "Elogio da Loucura" de Erasmus de Roterdão sobre uma verdadeira ética e moral individual baseado numa consciencia universal. A base para se conseguir a "Utopia".
Já agora foi lançado um livro excelente ("A lenda de Matim Rego" de Pedro Canais) que é a vida do marinheiro portugês que contou a história ao Thomas Moro.
Cumprimentos

1:35 da manhã  
Blogger ABA said...

Obrigado pela partilha, Augusto!
Tenho també uma bela sugestão musical para te fazer..
Abraço

2:24 da manhã  
Blogger augustoM said...

Olá Kwuan
A Utopia pode ser sinónimo de sonho, e como diz o poeta, "é o sonho que comanda a vida"
Um abraço. Augusto

Olá Natércia
Obrigado pelo elogio, mas na realidade não passo de um estudante amador que anseia por conhecimento.
O brio profissional, hoje em dia tão esquecido, é premissa fundamental para um bom desempenho profissional.
Um beijo Augusto

Olá Armando
Concordo plenamente consigo
Um abraço. Augusto

Olá Neuroglider
Erasmo mais o seu "Elogio da Loucura" é um texto para breve. Obrigado pela informação do livro "A lenda de Martin Rego" de Pedro Canais.
Um abraço. Augusto

Olá Jorge
É um livro que pelo seu conteúdo está sempre actual.
Um abraço. Augusto

Olá Stillforty
Tu é que me saíste uma grande Utopia.
Um beijo

Olá António
Obrigado pela sugestão, também bosto muito da música de Bach.
Um baraço. Augusto

12:19 da tarde  

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