sexta-feira, janeiro 20, 2006

Velas com tradição

O Creoula, último veleiro da frota da nossa saga bacalhoeira, é hoje navio de treino de mar para jovens a quem o mar ainda representa o espírito da aventura dos nossos antepassados.
Veleiro com cerca de 67 metros de comprimento, quatro mastros e uma área vélica de 1.240 m2, navegar nele é a concretização do sonho de qualquer amante da navegação à vela.
Inspirado nas linhas das antigas escunas canadianas, foi construído em 1937 num tempo recorde de 62 dias. Em Junho de 1937 efectuou a sua primeira campanha do bacalhau.
O navio foi modernamente equipado, com luz eléctrica, grupos de motores para esgoto, incêndio, baldeação, lavagem de peixe e manobra do ferro e das velas. Foi também equipado com aparelho de TSF e câmaras frigoríficas para o isco. As velas feitas de lona de algodão, foram manufacturadas pelos próprios marinheiros e pescadores.
Internamente dividia-se em três secções. Na central ficava o porão do peixe, agora transformado em aposentos dos instruendos. Na ré o alojamento dos oficiais e casa das máquinas e na zona de vante ficava o alojamento dos pescadores, paiol de mantimentos e as câmaras frigoríficas do isco.
Na nossa história marítima, o mar sempre foi palco da tragédia, e o Creoula não fugiu à tradição, quando a 10 de Outubro de 1938, durante um temporal, uma onda de grandes dimensões varreu o convés arrastando consigo o imediato e três pescadores que pareceram no acidente, causando simultaneamente avultados estragos materiais no navio, entre os quais a perda de 28 doris.
As águas geladas da Terra Nova e da Gronelândia que têm saudades das suas 37 campanhas, generosamente sempre lhe propiciaram boas pescarias. Como lugre bacalhoeiro navegou mais de 300.000 milhas.
Em 1973 foi a sua última campanha, sendo o único veleiro a ir aos bancos da Terra Nova, constratando com os modernos arrastões que participavam na campanha desse ano.
Mas o progresso não se compadece com o romantismo e foi considerado economicamente inviável. O seu brilhante passado foi esquecido e finda a campanha foi abatido ao serviço.

Eu fui um dos bafejados pela sorte, naveguei nele durante uma semana. Foi a concretização de um sonho da juventude. Já era meu conhecido de longa data, quando o Tejo era o porto de partida para a faina bacalhoeira.
De todos os veleiros concentrados no Tejo, e eram muitos nessa altura, o Creoula era o preferido aos olhos da criança que eu era.
Percorria a pé toda a margem do Tejo desde Belém até Alcântara, deliciando a vista com os veleiros, tantos mastros, vergas e cordame, enquanto a imaginação me colocava a bordo de todos eles e neles navegava ao sabor do vento.
Quando foi abatido à frota em 1973, e passou a ser usado como depósito de carvão, sem mastros, desfigurado, sujo e enferrujado, não era mais que um cadáver esperando ser desmantelado.
Mas a minha amizade por ele nunca esmoreceu e, periodicamente ia visitá-lo à doca do Cais do Sodré, onde estava atracado. Não me lembro se chorava ou falava com ele tentando confortá-lo do seu fado. Só me lembro que ficava muito tempo ao pé dele, como se fosse um amigo muito chegado.
Durou muitos anos a sua agonia, até que os homens para quem o perfume preferido é o cheiro do mar, lhe devolveram a dignidade perdida.
Com cerca de 45 anos de idade, e como membro de uma escola de vela, tive a oportunidade de voltar a encontrar o meu velho amigo e nele ter embarcado e, durante uma semana com ele navegar.
Quando embarquei, fi-lo tão devagar, como que uma surpresa lhe quisesse causar. Recebeu-me de braços abertos e logo todo o barco me quis mostrar. Olhou-me de soslaio com um sorriso matreiro, querendo saber se não me tinha esquecido dos comprimidos para não enjoar.
Nem comprimidos, nem botas de borracha, nem fato de oleado, nada podia faltar, um bom marinheiro havia-se em terra antes de ir para o mar.
Com o pano todo aberto, adornado pelo vento, sulcando as ondas, vivemos intensamente todos os momentos, quer limpando o convés, quer governando-o ao leme, quer manobrando as velas ou ainda verificando a sua posição para no rumo não se enganar.
Nada ficou por fazer, ver ou tocar, movido pela consciência de que dificilmente juntos voltaríamos a navegar.
Na despedida, no convés, trocamos um longo olhar que uma lágrima fez saltar.
Hoje, quando passa, não me vê, tão compenetrado vai na sua rota, mas eu paro sempre para lhe acenar com o olhar da saudade.

10 Comments:

Blogger contradicoes said...

Acredito amigo Augusto que tenha sido
uma experiência muito interessante uma
viagem neste veleiro. Fui velejador aos 18 anos era normalmente o proa dum catamaram pertença dum cunhado meu e lembro com muito saudade essa época.
Daí acreditar que o mesmo se passe contigo. Com um abraço do Raul

5:08 da tarde  
Blogger Unknown said...

Querido amigo!
Vim cá a agradecer a tua visita, e o teu apoio pelo que passei recentemente... tu que também vítima, compreendes muito bem a minha iniciativa de moderar comentários...
Eu cada vez que venho aqui, delicio-me com teus textos sempre cheios de tanta riqueza... Obrigada por isso também!
Deixo-te muitos beijos e muitos sorrisos amigos!

9:06 da tarde  
Blogger Estrela do mar said...

...Augusto, eu nunca entrei no Creoula...mas já entrei no Navio Escola Sagres e adoreiiii...por isso imagino o que deves ter sentido durante essa semana a bordo desse navio...


Jinhossss e boa semana.

12:15 da manhã  
Blogger Unknown said...

Essa era a viagem que eu nunca faria - tenho horror ao mar. Gosto de vê-lo com os pés bem assentes na terra.
Augusto, já estão no 'errante' os dados que faltavam.
Beijinhos.

10:03 da tarde  
Blogger Å®t Øf £övë said...

Augusto,
Gostei muito de ler este teu pedacinho de história.
É bom que estes antigos bacalhoeiros sejam recuperados para serem a imagem viva do que foi o sofrimento surreal dos pescadores de bacalhau desses tempos em que participavam dessas campanhas desumanas.
Abraço.

1:05 da manhã  
Blogger Unknown said...

Amigo caríssimo,
Passadas as tristezas é hora de demonstrar a felicidade que sinto por tudo aquilo de bom que possuo em vida, inclusive a tua amizade!
Beijos, flores e muitos sorrisos para ti!

2:37 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

o mar é um encanto.

9:01 da manhã  
Blogger AJB - martelo said...

Para alem dessa paixão pelo mar e pelas artes marítimas, sou obrigado a dizer que a forma e o conteúdo do texto são cativantes; haja quem goste de escrever bem a língua mátria...
abç

2:08 da tarde  
Blogger Luís Botelho Ribeiro said...

Caro Augusto,

Muito obrigado também a si. Em Outubro de 1999 tive o prazer de participar numa viagem de treino de mar no Creoula. Inesquecível. Hoje faço vela ligeira e assim recupero de vez em quando essa "fome de mar" que talvez tenha (re)descoberto no Creoula. Obrigado aos recuperadores do Creoula, ao Eng, Naval Fernando Castro e a si, Augusto, por ir vê-lo no tempo que passou abandonado numa doca da "Ribeira das Naus".

Luis Botelho R.

1:06 da tarde  
Blogger Geosapiens said...

...é de facto era um barco imponente...o meu pai fez a escola nautica neste...belissimo o comentário...impeimi para dar ao meu pai...espero que não te importes...olha como me picas-te lá fiz um post sobre o Blognócio...obrigado pelas constantes visitas...um abraço...

1:30 da tarde  

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